O cenário de O Escolhido, nova série brasileira produzida pela Netflix, possibilita diversas leituras ao espectador: há o embate entre fé e ciência, personagens que passam a conhecer e vivenciar de perto outro tipo de crença (o que, de fato, os fazem entrar numa nova realidade), e também existe uma aura de mistério que paira do início ao fim devido ao dom do personagem principal. Há inúmeras camadas interessantes dentro da série e, por mais que todas não sejam devidamente desenvolvidas a fundo ao longo dos seis episódios deste primeiro ano, ela consegue abordar alguns destes temas introdutórios para que conheçamos pelo menos uma parcela este universo peculiar e propositalmente isolado.
A premissa, que gira em torno da chegada de três médicos – Lúcia (Paloma Bernardi), Enzo (Gutto Szuster) e Damião (Pedro Caetano) – a um vilarejo a fim de vacinar a população contra uma nova mutação do vírus da Zika, é realmente um resumo muito inicial. Se no primeiro episódio existe a instauração do conflito dos profissionais com os habitantes fiéis a uma pessoa intitulada como “O Escolhido”, nos capítulos seguintes há uma aproximação muito íntima para com aquele aquele local tido como sagrado e intocável. Por não poupar questões que chamam a atenção (como quando o personagem-título chegou à sua posição de curador, ou por que somente aquele povoado é digno de cura), a série ganha fôlego, mas falha no sentido de deixar algumas pontas soltas que poderiam ser trabalhadas de modo mais amplo caso não houvesse uma abordagem muito centrada no grupo que segue o misterioso homem.
No entanto, o ritmo e a divisão dos episódios são muito bem executados, de modo que conseguem traçar pontualmente até onde o ceticismo do trio de médicos vai, até chegar o momento em que todos passam a enxergar que os feitos d’O Escolhido não são cercados por mentiras. Por mais que falte maiores explicações sobre sua atuação como curandeiro e figura santa, é possível se aproximar facilmente da rotina do homem e seus fiéis muito pela ambientação da produção, que explora diversos cantos do Pantanal a fim de entregar cenários exóticos e muito bem detalhados – seja com objetos, o acampamento isolado e totalmente preparado, a igreja em que alguns rituais acontecem e, em suma, toda a cidade, que fora preparada com afinco (incluindo com a participação dos próprios moradores) para dar mais identidade à narrativa. A direção de arte faz um excelente trabalho para tornar todo este universo crível, assim como é possível ver em 3%.
A fluidez do roteiro é um dos pontos que mais se destacam em O Escolhido, pois a dinâmica entre dois grupos distintos é o que move toda a trama. Por vezes, elementos enigmáticos são apresentados com bastante regularidade (especialmente nos três primeiros episódios), mas acabam por ser substituídos pelas sub-tramas entre personagens. Lucia e O Escolhido (Renan Tenca) são os protagonistas de cada lado, expondo bem o ceticismo e a fé, mas Lucia perde um pouco de sua força a partir do momento em que passa a ficar mais próxima do líder daquele local. Sua ambição admirável de querer levar a medicina para todos dá espaço para uma certa ingenuidade com relação aos moradores locais, especialmente quando ela repentinamente se vê como elemento essencial para os planos dali. A ligação de Lucia com a civilização de Aguazul é digna e faz sentido no aspecto geral, mas algumas escolhas da personagem soam questionáveis e rápidas demais devido ao número reduzido de episódios e uma maior atenção a conflitos particulares.
Com uma construção que abre portas para uma interpretação que vai muito além do embate “ciência vs fé” (tema tão atual no cenário brasileiro) mas acaba apenas introduzindo tal chance, O Escolhido não aproveita todo o potencial que tem, especialmente por entregar uma mitologia tão original e tão rica que explora um pouco de nosso país. Questionamentos sobre a ignorância da religião são levemente trabalhados, mas ainda assim a sensação de que algo está faltando persiste, por mais que toda a construção de personagens e ambientes sejam o suficiente para prender a atenção e fazer valer a maratona. O trabalho de Carolina Munhóz e Raphael Draccon no texto da série é realmente minucioso, mas por sermos inseridos tão rapidamente àquela realidade oculta alguns diálogos acabam sendo muito expositivos – ou pouco naturais, também.
O Escolhido possui uma chance de ouro em mãos caso for renovada para uma nova temporada: o gancho que a cena final traz é firme, mas só poderá ser eficiente caso a série realmente mergulhe mais a fundo nas matas do Pantanal e nas motivações do personagem principal – assim como num maior aproveitamento do que é proposto ao público inicialmente. No mais, a produção tem capacidade de sobra para garantir mais profundidade no futuro, pois a tensão já está completamente instaurada e a motivação de cada personagem está tão clara quanto as águas que cercam Aguazul.