Bolsonaristas x Lavajatistas

A eleição presidencial de 2022, as divergências e o medo de traição colocam em alerta os grupos leais ao presidente Jair Bolsonaro e ao ministro Sergio Moro

0
640

A história começou sob o signo da parceria. Aproveitando-se dos estragos provocados pela Lava-­Jato nos maiores partidos políticos do país, Jair Bolsonaro empunhou a bandeira do combate à corrupção na campanha presidencial. Vencedor da eleição, convidou o então juiz Sergio Moro, símbolo da operação, para comandar o Ministério da Justiça e da Segurança Pública. Com o gesto, o presidente eleito agradou a uma fatia importante do eleitorado e, assim, investiu pesado na própria popularidade. Já Moro, ao aceitar o convite, alegou ter condições de — com a máquina federal nas mãos — ampliar o cerco contra o crime organizado e as quadrilhas de colarinho-­branco. Pelo roteiro traçado, os dois personagens manteriam uma relação de perfeita simbiose. Um fortaleceria o outro. Depois de oito meses de governo, algo fugiu do script, e imperam os atritos, as intrigas e as disputas pelo controle de cargos estratégicos. O motivo é simples: Bolsonaro acha que ele e Moro juntos são imbatíveis nas urnas, mas teme que o ministro, mais popular que o presidente, lance candidatura própria ao Palácio do Planalto em 2022. Por isso a história agora se desenrola sob o signo da desconfiança.

Conhecido por enxergar adversários e conspiradores em todos os cantos, Bolsonaro tem razão para estar preocupado. Pela primeira vez desde que assumiu o mandato, sua base de apoio rachou. De um lado está o bolsonarismo puro, que prega a defesa cega do presidente acima de qualquer coisa, sejam projetos prioritários, sejam bandeiras de campanha. De outro perfilam-se os lavajatistas, para quem o combate à corrupção é mais importante que a figura do presidente. A cizânia ficou explícita em razão da proposta de criação da chamada CPI da Lava-Toga, destinada a investigar o Poder Judiciário. Sob a batuta do guru Olavo de Carvalho, os bolsonaristas puros passaram a pregar contra a CPI, alegando que a comissão poderia prejudicar a governabilidade e a relação entre o Executivo e o Judiciário. “Vamos combater a corrupção? Não. Vamos combater primeiro o comunismo, seus idiotas”, disparou Olavo de Carvalho, com seu estilo habitual, num vídeo divulgado na internet. E acrescentou: “O que tem de fazer agora não é ficar cobrando o Bolsonaro. Você tem de se organizar para apoiá-­lo. A coisa mais urgente no Brasil é uma militância bolsonarista organizada”.

Na política, assim como nos casamentos e nas relações humanas, nenhuma aliança é rompida do dia para a noite. Trata-se de um processo longo, lento, com idas e vindas, que pode até ser revertido, mas na maioria das vezes desemboca num desfecho previsível. O que impulsiona esse desgaste é a diferença de estilos, a famosa incompatibilidade de gênios, e de objetivos. No caso de Bolsonaro e Moro, a origem da discórdia foi a tentativa de blindagem em relação aos problemas do senador Flávio Bolsonaro com assessores e movimentações financeiras. Desde o início do caso, o presidente esperava um gesto público de Moro em solidariedade ao senador, o que nunca aconteceu. Com o desenrolar dos movimentos jurídicos, Bolsonaro ficou ainda mais contrariado ao saber que Moro foi ao presidente do STF, ministro Dias Toffoli, pedir que o plenário do tribunal julgasse logo a liminar que suspendeu todas as investigações criminais que usam, sem autorização judicial prévia, dados detalhados de órgãos de controle, como o antigo Coaf. O mais notório beneficiado pela liminar de Toffoli foi exatamente Flávio Bolsonaro. O mal-­estar entre chefe e subordinado nessa questão de interesse familiar, tema muito caro ao presidente, deflagrou uma série de decisões administrativas, todas destinadas a fortalecer o clã Bolsonaro e enfraquecer Moro. Com o aval do presidente, o Congresso tirou o antigo Coaf do guarda-chuva do Ministério da Justiça. Rebatizado de Unidade de Inteligência Financeira, o órgão está vinculado agora ao Banco Central. Moro também foi ignorado na escolha do novo procurador-geral da República. Desde o início do governo, ele vinha sendo aconselhado a mapear possíveis candidatos para o cargo, conversar com os postulantes e apresentar ao presidente os melhores nomes. O ministro tinha preferência pública por Vladimir Aras, que atuou na área de cooperação internacional da Lava-­Jato, mas disse que aguardaria a formação da lista tríplice elaborada pelos procuradores para conversar com Bolsonaro. O ex-juiz acreditava que teria papel decisivo na indicação e chegou a afirmar reservadamente que o provável PGR, Augusto Aras, não era um bom nome. O presidente, como se sabe, ignorou solenemente sua opinião.

Nos casamentos em crise, o comportamento em público muitas vezes busca esconder os problemas sérios que ocorrem na intimidade. Na política, admitem-se também essas relações de conveniência, pois pega mal lavar a roupa suja diante dos outros. Enquanto o embate entre bolsonaristas puros e lavajatistas se desenrola, Bolsonaro e Moro se empenham em demonstrar harmonia quando estão sob os holofotes. O presidente levou o ministro para assistir a um jogo do Flamengo em Brasília e ainda fez o subordinado, torcedor do Athletico Paranaense, vestir uma camisa do rubro-­negro carioca. No último dia 15, foi a vez de Moro forçar a barra ao visitar Bolsonaro no hospital em que ele se recuperava de uma cirurgia de hérnia. O presidente havia proibido visitas de auxiliares. Moro insistiu. Foi então que a esposa do ministro, a advogada Rosângela Moro, entrou em contato com a primeira-dama Michelle Bolsonaro, que derrubou a resistência à cortesia. O encontro entre os quatro foi registrado numa foto, divulgada tanto pelo ministro como pelo presidente em suas respectivas redes sociais. “Visita ao sr. presidente e à sra. primeira-dama. Conversa agradável. Presidente recupera-se muito bem. O homem é forte”, escreveu o titular da Justiça.

Hoje a dupla vive uma relação de interdependência compulsória, tal qual o casamento em que as partes não se separam porque a situação financeira ficaria insustentável. O presidente até gostaria de demitir Moro, mas perderia uma base importante de apoio num momento em que sua popularidade vem diminuindo. Segundo pesquisa Datafolha, a aprovação a Bolsonaro caiu de 33% para 29% entre julho e agosto, enquanto a reprovação aumentou de 33% para 38%. No mesmo período, a aprovação de Moro passou de 52% para 51% e a reprovação, de 20% para 19%. A popularidade de Moro é apenas uma das razões pelas quais a demissão do ministro está, por enquanto, fora de cogitação. As outras são o temor do presidente de perder de vez o apoio dos lavajatistas e de a opinião pública chegar à conclusão de que Bolsonaro mentiu durante a campanha ao prometer o combate à corrupção. Até aqui, as pesquisas internas do Planalto mostram que os eleitores ainda acreditam que essa é uma das bandeiras do presidente. “A ideologia anticorrupção foi um dos motores que derrubaram parcelas importantes do PT e da chamada velha política. Quando o clã Bolsonaro e nacos do PSL começam a tentar se proteger politicamente de acusações de corrupção, minando a Lava-Jato, isso pode trazer consequências eleitorais”, diz a cientista política San Romanelli Assumpção, professora da Uerj.

Embora conte com o forte cacife da popularidade, Moro pode perder todas as fichas que apostou ao deixar a posição consolidada de chefão da Lava-­Jato para investir no pantanoso terreno da política. O risco da ida para Brasília seria compensado por uma cadeira no STF, seu grande sonho de consumo. Mas o negócio ficou mais distante com a revelação de graves problemas de conduta em sua época de juiz nas mensagens divulgadas pelo site The Intercept Brasil e reproduzidas por outros veículos, a exemplo de VEJA. Sem essa perspectiva, mas com o ibope ainda em um patamar muito bom, avaliam os bolsonaristas, o ex-juiz deve se entregar de corpo e alma à política. Para Moro, é a alternativa que resta no momento.

Por isso, apesar de todas as divergências, Bolsonaro prefere ter o ministro da Justiça a seu lado até quando for possível, quem sabe até 2022. Melhor tê-lo por perto do que se arriscar a ver Moro deixar o governo e se lançar candidato. Para o próximo pleito presidencial, uma alternativa considerada ideal pelos bolsonaristas é rifar o general Hamilton Mourão, que já foi acusado de conspirar contra o governo, e colocar Moro como vice na chapa à reeleição. A avaliação é que ela seria imbatível. O problema é conciliar duas agendas tão diferentes. Bolsonaro cobra uma lealdade cega de todos os seus comandados. Quem não segue sua cartilha simplesmente é descartado — basta lembrar os casos de Gustavo Bebianno e do general Santos Cruz. Ambos caíram porque não seguiram a regra de apoio incondicional ao capitão e a seus filhos influentes e complicados. Para Moro, firmar um pacto de sangue com o bolsonarismo pode significar fazer vistas grossas a episódios como o de Fabrício Queiroz e as célebres rachadinhas dentro do gabinete de Flávio Bolsonaro. Seria o passo em falso para enterrar de vez o prestígio já arranhado do herói nacional da luta contra a corrupção.

Sem ter muito para onde ir, o melhor para Moro é jogar o problema para a frente e tatear apoios e possibilidades aos poucos. Em uma entrevista recente, Bolsonaro disse que Moro era ingênuo ao chegar a Brasília. Era e ainda é, ressaltou. Os auxiliares do ministro concordam com esse diagnóstico, mas observam que o chefe aprende rápido. A VEJA, eles disseram que Moro já aprendeu, por exemplo, a mapear os movimentos políticos, registrando quem são seus adversários. A lista é extensa. Nela, destacam-se Dias Toffoli e os chamados ministros garantistas do STF, como Gilmar Mendes e Ricardo Lewandowski, que são contra pilares da Lava-Jato, como as prisões preventivas alongadas e a execução da pena após condenação em segunda instância. Para Moro, foi Dias Toffoli quem levou ao conhecimento de Bolsonaro seu pedido para que julgasse a liminar que suspendeu as investigações criminais abertas com base em dados completos de órgãos de controle.

Os filhos mais velhos do presidente (e aí mora o perigo para o ex-juiz) também estão no rol dos oponentes. O senador Flávio e o vereador Carlos Bolsonaro, segundo interlocutores de Moro, sempre falaram mal do ministro para o pai. Os dois teriam o costume de dizer que Moro é arrogante, “se acha” e não defende o governo quando deve. Flávio e Carlos, como alguns ministros palacianos, esgrimem a tese de que Moro trairá Bolsonaro e sairá candidato em 2022. Outra autoridade que atuaria nos bastidores contra o ministro, conforme relatos de seus auxiliares, seria o presidente da Câmara, Rodrigo Maia. Como evidência disso, citam a tentativa de criação da CPI da Vaza-Jato, com o objetivo de investigar o conluio do então juiz Moro com procuradores da força-tarefa de Curitiba. O ministro, que não quer por motivos óbvios a instalação da CPI, acha que Maia deixa o caso em banho-maria, sem arquivá-lo definitivamente, como forma de desgastá-lo. Ou pressioná-lo.

A disputa entre bolsonaristas e lavajatistas é a primeira desavença séria do mais novo capítulo da história política do país. Durante duas décadas, o Brasil conviveu com apenas dois projetos sólidos de poder: o dos tucanos, que governaram entre 1995 e 2002, e o dos petistas, que exerceram o poder entre 2003 e 2016. A eleição de 2018 consagrou um novo fenômeno, o bolsonarismo, que conquistou a Presidência da República e impulsionou uma onda conservadora nos governos estaduais e nas duas Casas do Congresso. A Lava-Jato foi um fator decisivo nesse processo, revelando os casos de corrupção que implodiram primeiro o PT, depois o PSDB. Foi ela que pavimentou o caminho para a vitória de um outsider como Bolsonaro.

Mas o fato é que o lavajatismo tem características diferentes das do bolsonarismo. No seu estado mais puro, ele se resume a um combate incansável à corrupção, de todos os partidos. O bolsonarismo, além de propor uma agenda mais liberal na economia, quer mudar os costumes, baseado em valores evangélicos. É contra o aborto, o casamento gay e outras liberdades individuais. Em relação à batalha contra a corrupção, ambos concordam, até o momento, que as denúncias batem à porta da família do presidente. Aí começam os problemas — e as divisões.

Tudo fica maior, evidentemente, quando de forma prematura o ocupante do Palácio do Planalto passa a mirar, a três anos do pleito, a eleição de 2022. Bolsonaro, que dizia não querer disputar um novo mandato, volta-se contra todos que demonstram o desejo de chegar à Presidência. Por enquanto, são poucos os pré-candidatos especulados — caso dos governadores João Doria, de São Paulo, e Wilson Witzel, do Rio, que fizeram campanha para Bolsonaro em 2018. Tão logo os dois deixaram claras suas ambições, o presidente passou a atacá-­los. Bolsonaro disse que Doria mamou nas tetas do governo do PT por ter comprado um jatinho com financiamento do BNDES. Já Flávio Bolsonaro exortou o PSL a deixar a base de apoio de Witzel. Os governadores agora são considerados traidores — e o presidente costuma ser implacável com quem ele considera desleal. Moro ainda não é enquadrado nessa categoria, mas é certo que, se se decidir pela própria candidatura presidencial, passará imediatamente à condição de inimigo. A VEJA, o líder do PSL na Câmara, deputado Delegado Waldir, fez o seguinte diagnóstico: “O Moro tem uma bancada maior que a do governo. Ele tem mais credibilidade que o presidente porque é um herói nacional. Colocou na cadeia um presidente da República, governadores, parlamentares e os maiores empresários do país. O presidente é um fenômeno eleitoral e político, mas ele vai ter de construir esse papel de herói. O Moro já tem um trabalho mostrado”. O capitão sabe do potencial de estrago se decidir transformá-lo de vez em inimigo. A exemplo das vésperas das grandes batalhas, bolsonaristas e lavajatistas fazem no momento um jogo tático, tentando antecipar os movimentos do adversário. A grande batalha pode começar a qualquer momento.


SIMBIOSE IMPERFEITA

Em oito meses de governo, o presidente Bolsonaro e o ministro Sergio Moro acumularam atritos que alimentaram muitas especulações e intrigas e também deixaram claro que, por enquanto, um ainda depende muito do outro

Lava-Toga
Moro nunca se posicionou claramente sobre a possibilidade de uma CPI para investigar supostas irregularidades cometidas por ministros de tribunais superiores, o que é interpretado como um aceno de apoio. Bolsonaro é contra a instalação da CPI por considerá-la um fator de instabilidade na relação com o Judiciário

O cerco ao amigo
Aliado de Bolsonaro, o deputado Hélio Negão foi envolvido numa investigação conduzida pela Polícia Federal no Rio de Janeiro. Ao saber que se tratava de um homônimo do parlamentar, o presidente interpretou a ação como um complô para atingi-lo. Bolsonaro instou Moro a demitir o diretor-geral da PF. Já o ministro determinou a abertura de investigação para apurar responsabilidades. O superintendente da PF no Rio foi substituído

Derrota no Congresso
No seu projeto de combate ao crime organizado e à corrupção, Moro considerava o Coaf, órgão de inteligência financeira, fundamental para sedimentar o trabalho de investigação. O Congresso, porém, retirou o Coaf da Justiça. O ministro viu no ato uma maneira de enfraquecê-lo politicamente e detectou a falta de esforço do governo para evitar a mudança

Caso Queiroz
O presidente queixa-se de que Moro nunca defendeu publicamente o senador Flávio Bolsonaro, suspeito de recolher parte do salário de seus funcionários quando era deputado na Assembleia Legislativa do Rio. Bolsonaro ficou irritadíssimo ao saber que o ministro estivera com Dias Toffoli, presidente do STF, e lhe pedira que acelerasse o julgamento de uma decisão que contrariava os interesses de seu filho Zero Um

Poder reduzido
Nas últimas semanas, espalhou-se no governo a versão de que o Ministério da Justiça seria dividido em dois. Na nova configuração, Moro ficaria apenas com a parte administrativa, o que esvaziaria completamente suas funções. A ideia, segundo assessores do ministro, estaria sendo disseminada por um militar de alta patente com acesso ao Planalto

Armas
Bolsonaro defendeu a ampliação do porte de armas a diversas categorias profissionais. Em um parecer encaminhado à Casa Civil, Moro considerou que não havia base legal para sustentar a medida. Recebeu o recado de que a extensão do porte era uma ordem do presidente e teve de recuar. O decreto acabou revogado por pressão do Congresso

Ministério Público
Pela natureza do cargo, é natural que o ministro da Justiça seja ouvido sobre a escolha do futuro procurador-geral da República. Bolsonaro indicou Augusto Aras sem consultar Moro, que tinha um candidato que nem sequer entrou na lista de nomes analisados pelo presidente

Atentado a faca
Bolsonaro acredita que o atentado a faca contra ele durante as eleições foi parte de uma conspiração política e acusa a Polícia Federal de não ter se empenhado o suficiente para desvendar a trama. Até agora a PF concluiu que o criminoso agiu sozinho

Com reportagem de Marcela Mattos e Nonato Viegas

Publicado em VEJA de 25 de setembro de 2019, edição nº 2653

DEIXE UMA RESPOSTA

Por favor digite seu comentário!
Por favor, digite seu nome aqui