Jesus gay pode; e ainda perdoa humoristas da pior tentação

Bater nos supostamente poderosos, como o cristianismo em recessão, é um erro clássico, mas irresistível para autores de comédia

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A Primeira Tentação de Cristo é engraçado?

É.

É feito para provocar?

É. Esta é a essência da sátira. Quem venera os grandes ícones da religião cristã, por favor, não assista.

É feito para provocar por causa da influência política dos evangélicos, principalmente no atual governo?

Sem dúvida nenhuma.

Bebe na fonte do Monty Phyton?

Absolutamente. E é um mérito inspirar-se no melhor grupo de humor de todos os tempos.

Ou pelo menos dos tempos possíveis, em que não existe um Aristófanes para ironizar o embate entre Ésquilo e Eurípides no reino dos infernos, quer dizer, Hades, pelo título de maior poeta trágico.

E ainda com um deus no meio, no caso, Dionísio.

O que A Primeira Tentação de Cristo não é: original.

Jesus gay já virou um chavão de tão repetido por modernos de várias estirpes que recaem no erro de bater num cachorro já manco e sem dentes como o cristianismo, em acelerado refluxo na Europa.

É como o pessoal que parece estar constantemente lutando contra a ditadura quase meio século depois que acabou.

O fato de que os evangélicos sejam um impressionante fenômeno político na periferia (falando aqui de Brasil no concerto das nações, não de zonas urbanas), passando de menosprezados e discriminados a influenciadores e eleitores de governantes em menos de três décadas, dá um fôlego extra ao filmete cômico.

Satirizar poderosos é o feijão com arroz da comédia.

Os evangélicos deveriam, então, se sentir orgulhosos? Claro que não.

Todo mundo entende que os sentimentos religiosos acumulam um alto teor de sensibilidade, justamente por tratar de um valor supremo na vida dos que os têm.

Quando o Monty Phyton fez A Vida de Brian, o filme foi proibido em algumas regiões da Inglaterra e, acreditem na civilizadíssima Noruega (“Tão engraçado que foi proibido na Noruega”, trolaram os suecos, numa piada que só escandinavos acham hilária).

Os brilhantes integrantes do grupo, todos formados em Cambridge ou Oxford, não na PUC-Rio, tentaram até uma alternativa.

O filme trata de Brian Cohen (o sobrenome remete à tribo da casta sacerdotal de Israel, da qual virá o Messias, segundo a tradição judaica), um bocó que por coincidência nasceu no mesmo dia que Jesus. E na manjedoura ao lado, provocando a inevitável confusão dos Reis Magos.

As coincidências, claro, vão se sobrepondo de forma hilariante à medida em que Brian se revela um profeta relutante e atrapalhado. Jesus mesmo é tratado de forma digna.

Detalhe: o Jesus hesitante ou em dúvida com sua missão, satirizado em a Primeira Tentação, é típico dos evangelhos sinópticos (Marcos, Mateus, Lucas). Sem a bobajada, claro.

“Afasta de mim esse cálice”, pede, em Getsêmane, sabendo, em traços gerais, do sofrimento que terá de oferecer pela salvação da humanidade.

João, o quarto evangelista canônico, é o único que traça um Jesus que conhece o roteiro inteirinho, pronto e acabado, sem as vacilações da tragédia grega.

Os membros do Monty Python alegam que quando foram escrever o roteiro em Barbados, ilha do Caribe que proporcionou visitas de Mick Jagger, descobriram que “Jesus era um cara legal”.

“Dizia coisas com as quais concordávamos, o efeito comédia não estava na figura dele”, segundo Terry Jones, um dos seis integrantes da trupe e diretor do filme.

O negócio era ironizar os fariseus, a cegueira do fanatismo que, em tantas ocasiões, ofusca a nobreza da devoção religiosa.

O financiamento para o filme, claro, foi cortado. O ex-Beatle George Harrison bancou o orçamento de 4 milhões de libras.

“Não partimos do princípio de ofender deliberadamente. A não ser quando achamos que temos motivo”, ironizava Graham Chapman, o intérprete de Brian. E gay na vida real.

No filme, ele fica interessado numa rebelde chamada Judite e, por causa dela entra para o grupo Frente Popular da Judeia, inimigo mortal dos ocupantes romanos e dos concorrentes, a Frente do Povo da Judeia.

Esta uma ironia que escapa a quem não tem referências sobre os grupos armados palestinos de orientação comunista (“popular” ou “povo” dão a dica) da época; hoje, todo mundo é islâmico isso ou aquilo.

Numa reunião dos militantes rebeldes, saiu a frase que sobreviveu aos tempos e entrou para o cânone do humor: “Certo, certo, mas fora saneamento melhor, a medicina, educação, vinho, ordem pública, irrigação, estradas, sistema de abastecimento de água e saúde pública, o que os romanos fizeram por nós?”.

Piada boa não precisa ser explicada, mas esta fica mais divertida à luz da história das ilhas britânicas, onde os romanos chegaram com ninguém menos que Júlio César e foram embora, sem maiores explicações, 400 anos depois, deixando um enorme legado às selvagens tribos celtas. Ou àquelas que aderiram à romanização.

Muitos acham que o filme não seria feito no ambiente politicamente correto de hoje.

Aliás, seis caras brancos de Oxbridge, o nome que funde as duas grandes universidades, cheios de referências históricas e intelectuais, não dispostos a expor interminavelmente suas misérias sexuais ou emocionais (ou as cicatrizes da mastectomia dupla, como Tig Notaro) também não teriam muitas chances como humoristas.

Michael Palin (o Pôncius Pilatos de língua presa de A Vida de Brian) disse que não teria coragem de satirizar o Islã.

Aliás, os autores de A Primeira Tentação de Cristo também não tiveram.

Na “viagem” involuntária em que Jesus dialoga com Shiva, Buda e outras divindades, Alá está convenientemente ausente.

Até na periferia da periferia, ecoa o massacre do Charlie Hebdo, o jornal satírico onde os irmãos Said e Chérif Kouachi assassinaram doze pessoas e furaram de bala de fuzil mais onze.

O “crime” foi publicar uma charge de Alá.

Aliás, o próprio jornal não mexe mais com o assunto.

Com essa gente, não se brinca.

Em compensação, os ensinamentos cheios de amor e bondade espalhados há dois mil anos pelo homem de Nazaré, tão deturpados ao sabor da história, prevaleceram: os cristãos não matam blasfemos há muito, muito tempo.

Hoje, é possível responder só com a parte boa à pergunta “Afinal, o que o cristianismo fez por nós?”.

A preservação do patrimônio intelectual da humanidade, fenomenais doutores da Igreja como Santo Agostinho, os direitos e a dignidade de cada ser humano feito à imagem divina, as catedrais, o renascimento e a disseminação do conhecimento que permitiu aos filhos rebeldes do Deus amoroso dar a volta e contestar a própria religião, redundando nas liberdades civis cuja âncora é a livre expressão de ideias e opiniões.

Enfim, a civilização ocidental.

Sem ela, não existiriam nem a Primeira nem a Última Tentação de Cristo.

Ah, sim, Deus está ótimo na Primeira.

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