Circula pelas redes sociais uma mensagem que diz: “Não existe a menor condição de ter morrido 100 mil pessoas no Brasil pela Covid-19. A menos que tenham encontrado a cura para as demais doenças”. A afirmação é #FAKE.
Selo #FAKE — Foto: G1
Com base no Portal da Transparência dos cartórios, a mensagem lista, mês a mês, o total de mortes registradas pelos cartórios no Brasil de fevereiro a julho de 2019 e de 2020. Ao final, soma os números e diz que, de fevereiro a julho de 2020, houve 65.885 óbitos a mais que no mesmo período de 2019. Esse número, portanto, não seria suficiente para se chegar à cifra de mais de 100 mil mortes que consta das estatísticas oficiais divulgadas pelas secretarias da Saúde e pelo Ministério da Saúde.
A mensagem mostra dados reais dos cartórios. Mas a conclusão é falsa porque 1- não leva em conta a defasagem e a subnotificação de dados dos cartórios; 2- omite e 3- distorce informações relevantes.
- A mensagem não leva em conta que os cartórios ainda não contaram todas as mortes ocorridas em 2020 e talvez nem consigam contá-las – o registro de uma morte no sistema leva dias e muitas vezes nem é feito
- Omite que o próprio portal dos cartórios registra quase 90 mil mortes por Covid até julho
- E distorce a comparação ao não levar em conta que as 100 mil mortes só foram atingidas em agosto
O que consta no portal dos cartórios
O portal da Transparência do Registro Civil foi criado em 2018 e é mantido pela Associação Nacional dos Registradores de Pessoas Naturais (Arpen) com informações e dados estatísticos sobre nascimentos, casamentos e óbitos.
Neste ano, em razão da pandemia, o portal criou uma seção com informações de mortes por Covid, onde é possível saber a quantidade de casos registrados em um determinado período.
Mas os dados são defasados e subnotificados:
- Segundo a Arpen, o registro de uma morte leva normalmente até 14 dias para ser incluído no Portal da Transparência. Durante a pandemia, no entanto, esse prazo foi ampliado para até 60 dias em algumas cidades e estados, como no Ceará.
- Além disso, os dados dos cartórios disponíveis no site não são fechados. Tanto os de 2020 quanto os de anos anteriores são atualizados pelos cartórios periodicamente. Ou seja, há uma defasagem em relação aos dados divulgados pelos governos estaduais.
Isso significa que, se a diferença de mortes foi de 65 mil em algum momento, uma nova consulta no futuro pode indicar outra diferença.
Outra questão é o total de mortes por Covid. A mensagem que circula mostra apenas números do total de mortes por qualquer causa no Brasil, sem especificar quantas são por Covid.
A mensagem omite, portanto, que o próprio portal dos cartórios registra, de março a julho deste ano, 89 mil mortes por Covid-19 – número também defasado, mas próximo do que é registrado pelas autoridades de saúde. Segundo dados do consórcio de imprensa a partir de números informados pelas secretarias estaduais, no fim de julho havia 92,5 mil mortes pelo novo coronavírus.
Além disso, mesmo quando todos os registros de cartório forem incluídos no sistema, esse número deverá continuar inferior ao que as secretarias de Saúde têm. O motivo é a chamada “subnotificação”: muitas pessoas não registram a morte no cartório, especialmente as mais pobres e que vivem em cidades pequenas do interior, explica a epidemiologista Fátima Marinho. “O subregistro é grande em alguns estados, chega a 27,9% no Maranhão”, diz.
Menos mortes por outras causas
Outro ponto falso da mensagem é a frase “A menos que tenham encontrado a cura para as demais doenças”.
Essa frase não leva em conta que: 1- houve menos mortes por outras causas e 2- pessoas com doenças crônicas e idosos têm a vida abreviada pela Covid.
- Menos mortes por outras causas: o caso mais claro é o de acidentes de trânsito. A menor circulação de pessoas fez diminuir as mortes no trânsito. Dados do DPVAT mostram que, de março a junho, houve uma redução de 2.312 indenizações pagas do seguro obrigatório por mortes em acidentes de trânsito, por exemplo, o que indica uma redução dos óbitos. Além disso, segundo o infectologista Leonardo Weissmann, consultor da Sociedade Brasileira de Infectologia, o isolamento social adotado por conta da pandemia fez diminuir a incidência de outras doenças e, consequentemente, o número de mortes causadas por elas. “O coronavírus continuou se espalhando porque é uma doença com uma taxa de transmissão muito alta. Existem outras doenças que são menos transmissíveis”, afirma ele. “Além disso, o vírus é um vírus novo. Estava todo mundo suscetível.”
- Pessoas com doenças crônicas e idosos têm a vida abreviada pela Covid: segundo a epidemiologista Fátima Marinho, pacientes com doenças preexistentes viveriam mais se não tivessem contraído o coronavírus. “Muitas pessoas com doenças crônicas estão tendo antecipada a data de sua morte. Muitos poderiam viver 2, 5, 10, 15 anos ou mais dependendo da condição e do acesso ao cuidado em saúde“, diz Fátima. Uma pesquisa feita com dados da Itália, do Reino Unido, da Escócia e da Organização Mundial da Saúde estima que idosos poderiam viver uma década a mais, em média, se não tivessem contraído a Covid.
Comparação sem os dados de agosto
Há um outro detalhe no texto falso: o número citado na mensagem desconsidera as mortes ocorridas em agosto. A marca de 100 mil mortes foi atingida apenas no dia 8 deste mês, segundo os dados das secretarias estaduais da Saúde compilados pelo consórcio de veículos de imprensa. Só nesses oito dias, foram registradas 7,9 mil mortes.
A mensagem, porém, só cita dados de cartórios até julho.