Cientistas em Hong Kong anunciaram, nesta segunda-feira (24), a confirmação do primeiro caso no mundo de reinfecção pelo novo coronavírus (Sars-CoV-2). A pesquisa com o resultado foi aceita para publicação no “Clinical Infectious Diseases”, da editora da Universidade de Oxford, no Reino Unido.
Os pesquisadores testaram o código genético do vírus e descobriram que o vírus da segunda infecção pertencia a uma linhagem diferente da primeira. Ao ser contaminado pela primeira vez, o paciente, um homem de 33 anos, teve apenas sintomas leves; na segunda vez, nenhum sintoma.
Segundo os cientistas de Hong Kong, a segunda “versão” do vírus é mais próxima à que circulou na Europa entre julho e agosto (o paciente havia voltado de uma viagem à Espanha). Já o primeiro vírus era semelhante aos que circularam em março e abril.
A pesquisadora Ester Sabino, da Faculdade de Medicina da USP, que fez parte da equipe que sequenciou o genoma do coronavírus no Brasil, confirmou ao G1 que, conforme a árvore filogenética dos vírus, eles são diferentes (uma árvore filogenética detalha as relações entre várias espécies e as mutações que elas sofreram).
Circulação permanente do vírus é ‘provável’, dizem cientistas
Para Sabino, a principal consequência da descoberta é que, com a reinfecção possível, a transmissão da doença se mantém, porque mesmo pessoas que já tiveram a doença podem se infectar de novo.
Isso é apontado pelos cientistas no estudo. “A confirmação da reinfecção tem várias implicações importantes”, dizem.
“Em alguns casos, a reinfecção ocorre apesar de um nível estático de anticorpos específicos”, pontuam.
Em maio, a Organização Mundial de Saúde (OMS) já havia sinalizado a possibilidade de que o coronavírus se tornasse endêmico (ou seja, passasse a ser encontrado regularmente em uma determinada área ou população), como o HIV, sem nunca desaparecer.
Implicações para a vacina
Injeção com vacina em teste para o coronavírus é aplicada na Alemanha — Foto: REUTERS/Kai Pfaffenbach/File Photo
Sabino explica que, para uma futura vacina, as mutações não são o problema, porque, além de serem poucas, no caso do coronavírus, as mudanças (mutações) que ele sofre não mudam a forma com que é reconhecido pelo sistema imune. A questão é se o corpo é capaz de manter esse reconhecimento a longo prazo.
Esse “reconhecimento” a longo prazo importa porque, ao receber uma vacina, o corpo é induzido a produzir anticorpos para uma determinada doença.
Para esclarecer a diferença, Sabino compara o Sars-CoV-2 ao HIV – que é um vírus que tem muitas mutações, e, por isso, é difícil encontrar uma vacina que funcione contra ele. Diferente do coronavírus, o HIV “muda” tanto que o sistema imune passa a não ser mais capaz de reconhecê-lo, e, por isso, tem dificuldade em combatê-lo.
Na pesquisa de Hong Kong, os cientistas dizem que uma vacina para a Covid-19 não deve ser capaz de fornecer proteção para a vida inteira. Além disso, recomendam que mesmo pacientes que já tiveram a doença devem ser imunizados.
“Novos estudos sobre reinfecção, que serão vitais para a pesquisa e desenvolvimento de vacinas mais eficazes, são necessários, afirmam.
Ester Sabino pondera que esse caso pode ser raro.
“Pode ser que esse indivíduo tenha perdido [os anticorpos] rapidinho. Mas, se a maioria perder com um ano, talvez a cada ano você tenha que receber de novo, junto com a influenza, uma dose dessa vacina”, diz.
Anticorpos
No caso do paciente de Hong Kong, apesar de ele ter tido a primeira infecção pelo coronavírus, não foram detectados anticorpos assim que ele foi infectado pela segunda vez – os anticorpos só apareceram depois de cinco dias. Isso pode indicar, segundo os cientistas, duas possibilidades:
- que ele não desenvolveu os anticorpos depois da primeira infecção;
- que ele desenvolveu os anticorpos depois da primeira infecção, mas eles foram “sumindo”, e, quando ele foi infectado pela segunda vez, não era mais possível detectá-los.
Para os cientistas, essa falta de respostas nos anticorpos pode ter consequências tanto para tornar possível que as pessoas tenham o coronavírus mais de uma vez quanto na gravidade da doença.
“Apesar de nosso paciente ser assintomático na segunda infecção, é possível que a reinfecção em outros pacientes resulte em uma infecção mais severa”, alertam.
Mas eles destacam que é possível que o paciente tenha desenvolvido os anticorpos depois da primeira vez que ficou doente – isso pode apenas não ter sido detectado pelos testes.
Ao mesmo tempo, eles lembram, também, que a resposta imune das células T pode ter um papel em melhorar a severidade da doença na segunda infecção. Outros estudos, com o Sars-CoV-2 e outros coronavírus, mostram que eles podem induzir a imunidade das células T a longo prazo. (Os cientistas de Hong Kong não falaram sobre essa resposta no paciente reinfectado).
OMS diz que reinfecção ‘é possível’
OMS: não se pode tirar conclusões precipitadas sobre reinfecção
A líder técnica da Organização Mundial de Saúde (OMS), Maria van Kerkhove, disse que “é possível” que este seja o primeiro caso confirmado de reinfecção no mundo.
Maria van Kerkhove, líder técnica do programa de emergências da OMS — Foto: Christopher Black/OMS
“Acho que é importante colocar isso em contexto. Houve mais de 24 milhões de casos relatados até agora, e precisamos olhar para isso a nível de população. É muito importante que documentemos isso, e, em países que podem fazer isso, que o sequenciamento seja feito. Isso ajudaria muito. Mas não podemos pular para nenhuma conclusão, mesmo que esse seja o primeiro caso documentado de reinfecção”, disse.
Van Kerkhove lembrou ainda, que, segundo o que se sabe até agora, todos que são infectados pelo Sars-CoV-2 desenvolvem algum nível de imunidade contra ele – a questão é saber o quão protetora ela é e por quanto tempo dura.
No Brasil, a USP apontou, no início do mês, um possível caso de reinfecção pela doença em uma técnica de enfermagem, em Ribeirão Preto. Ela apresentou, pela segunda vez, os sintomas da doença, e teve um segundo resultado positivo no teste diagnóstico.