O tremor fica mais forte. É possível ouvir os equipamentos de iluminação em cima deles chacoalhar. Um deles olha para o alto. A principal apresentadora suspira. É hora de partir.
Eles tiram os microfones de lapela e deixam às pressas o estúdio do programa de televisão, que era transmitido ao vivo no momento em que um terremoto de magnitude 5,5 sacudia a cidade de Pohang, na Coreia do Sul.
Foi um abalo sísmico poderoso. Outras imagens mostram pessoas fugindo de prédios enquanto as paredes desabam atrás delas.
A cidade de meio milhão de habitantes ficou em choque. Mas esse terremoto não foi um fenômeno natural – foi desencadeado pelo homem.
Esta foi a conclusão de um relatório publicado por uma equipe de especialistas que tentou descobrir o que causou o tremor em 15 de novembro de 2017 em Pohang, que deixou 135 pessoas feridas e 1,7 mil temporariamente desalojadas.
Milhares de edifícios foram danificados, gerando um prejuízo de US$ 75 milhões.
Para descobrir se a atividade industrial havia desencadeado o terremoto (havia um projeto de perfuração geotérmica em andamento na região), os sul-coreanos pediram ajuda a uma nova geração de sismólogos: os chamados “detetives de terremoto”.
Eles são encarregados de analisar registros sísmicos e dados da indústria para verificar se um tremor foi natural ou não.
Não é uma tarefa fácil. Mas esses cientistas estão desenvolvendo métodos mais seguros para identificar os responsáveis. Um verdadeiro trabalho de perícia.
Com cada vez mais perfurações e operações de “fracking” (fraturamento hidráulico) em todo o mundo, terremotos induzidos pelo homem (ou antropogênicos) se tornaram uma preocupação crescente.
Atualmente, cerca de 100 mil poços de petróleo são perfurados todos os anos – e o uso de energia geotérmica, que às vezes envolve a injeção de fluidos em rochas quentes para gerar vapor, pode aumentar em seis vezes até 2050.
Ao remover grandes quantidades de combustível fóssil ou inundar rochas fraturadas com líquido, é possível alterar o equilíbrio de tensões subterrâneas e provocar um terremoto.
Embora a expressão “terra firme” seja muito usada, em uma escala geológica, o solo embaixo dos nossos pés é tudo, menos firme. Está repleto de níveis instáveis de matéria com variadas densidades.
Há falhas e fraturas, geralmente com correntes de fluido passando por elas. Há também sedimentos, argila e rochas. Sem mencionar, em uma escala ainda maior, placas tectônicas gigantes que se encostam ou se separam. Em alguns lugares, o chão é como uma torre de tijolos de brinquedo esperando para ser derrubada.
Bill Ellsworth, do Centro de Atividade Sísmica da Universidade de Stanford, nos EUA, se lembra da primeira vez que viu as imagens de pessoas fugindo dos prédios enquanto o terremoto de Pohang sacudia a cidade.
“Eles deram muita sorte de ninguém ter morrido, depois de ver algumas imagens das câmeras de segurança”, diz o especialista, que fez parte da equipe internacional que investigou o que aconteceu na Coreia do Sul.
Os terremotos são medidos na escala Richter – que é “logarítmica” – o que quer dizer que um aumento de um ponto significa um aumento de 10 vezes na força. Um terremoto de magnitude 3 na escala Richter seria sentido pela população, e de escala 4 seria o suficiente para derrubar objetos das prateleiras.
Um evento de magnitude 5,5 ou superior causado pela atividade humana é muito raro e, embora ainda seja considerado moderado, pode ser suficiente para danificar edifícios.
No dia seguinte a Pohang ser sacudida pelos tremores, a NexGeo – empresa que operava a usina geotérmica experimental – negou que tivesse qualquer responsabilidade pelo ocorrido.
Mas quando Ellsworth e sua equipe começaram a analisar as evidências, uma história diferente veio à tona. Eles usaram como base dados sísmicos da área, assim como informações sobre a atividade de perfuração da NexGeo, que cooperou com a investigação.
As usinas geotérmicas operam usando o calor do solo para gerar eletricidade. Há várias maneiras de fazer isso. Algumas utilizam, por exemplo, vapor liberado diretamente de reservatórios geotérmicos.
Em outros casos, a rocha pode estar quente, mas não há fluido suficiente para trazer calor à superfície na forma de vapor. Para fraturar a rocha e liberar esse calor, a NexGeo planejava injetar fluido no solo.
Antes de chegar a essa etapa, a empresa precisava perfurar profundamente a terra. Foi durante esse processo que as coisas deram errado.
“Por algum motivo, havia uma passagem que permitia que o fluido escapasse do poço”, explica Ellsworth.
Ao injetar ainda mais fluido, eles garantiram a perfuração do poço. Mas a enorme pressão causou o que ninguém queria: atividade sísmica.
“Isso desencadeou alguns eventos muito pequenos, tão pequenos que não foram notados na época”, diz Ellsworth.
O que a equipe de perfuração parece não ter percebido, mas que a análise espacial desses miniterremotos mostrou mais tarde, foi que a perfuração tinha, na verdade, atravessado uma falha geológica – onde duas placas tectônicas se encontram. O movimento da terra pode acontecer ao longo dessas falhas. É isso que causa terremotos.
Idealmente, as falhas geológicas em áreas sujeitas a perfuração ou injeção de fluidos são identificadas e costumam ser evitadas.
Nesse caso, em parte porque não havia indicação na superfície de uma falha geológica, a equipe sul-coreana não fazia ideia do que havia perfurado. Como Ellsworth pontuou: “Foi muita falta de sorte.”
Os primeiros miniterremotos, ignorados na época, eram um sinal de que havia algo errado. Apenas algumas semanas depois, ocorreu o terremoto de magnitude 5,5.
Os dados coletados por Ellsworth e seus colegas os convenceram de que o evento foi induzido por atividade humana. Embora tenha havido algum debate acerca dos resultados, as conclusões já foram aceitas pelo governo sul-coreano, que se comprometeu a desativar a usina geotérmica.
A equipe de perfuração poderia ter notado a atividade sísmica inicial e parado de perfurar a tempo?
É possível, diz Ellsworth, mas eles contavam com um sistema de semáforo relativamente simples para ajudá-los a julgar se a perfuração era segura. Esse sistema envolve monitorar a atividade sísmica e deixar de perfurar apenas se for atingida uma certa magnitude de terremoto.
Ellsworth ressalta que, nesse caso, a magnitude dos miniterremotos era muito baixa, mas o mapeamento da área onde ocorreram revelou a presença de uma falha geológica.
Esse tipo de análise mais abrangente poderia, em teoria, ter alertado os operadores de perfuração sobre a gravidade da situação. A BBC Future entrou em contato com a NextGeo para discutir o conteúdo do relatório, mas eles não responderam até o fechamento desta reportagem.
Todavia, escutar o solo e interpretar os diferentes ruídos produzidos lá embaixo não é uma tarefa fácil. O que podemos fazer então?
A 8,5 mil quilômetros de distância, no sul da Inglaterra, um cientista se viu envolvido em outro caso de investigação sísmica – desta vez, envolvendo uma operação de perfuração de petróleo na zona rural de Surrey.
Era uma tarde ensolarada no início da primavera, quando Stephen Hicks abriu uma enorme caixa preta perto de um painel solar instalado em um campo.
“Temos cinco destes na área”, diz ele.
Hicks é um sismólogo da Universidade Imperial College London, no Reino Unido. E se viu liderando uma investigação local para encontrar a causa de uma série de pequenos terremotos na área. Não é algo que o condado de Surrey, com seus riachos e colinas, esteja acostumado.
Mas em 27 de fevereiro do ano passado, a região foi atingida por um terremoto de magnitude 3,1 nas primeiras horas da manhã. Foi o tremor mais forte registrado até agora e, embora não tenha sido muito intenso, foi um evento incomum. O Reino Unido é atingido apenas por dois ou três desses tremores por ano.
Como uma empresa chamada UK Oil and Gas (UKOG) está extraindo petróleo nas redondezas, muitos moradores têm receio de que a atividade esteja perturbando antigas falhas tectônicas e causando os terremotos.
Houve uma série de protestos no local da perfuração. E muitos moradores fizeram um apelo aos cientistas para descobrir o que realmente estava acontecendo. É aí que entra o trabalho de Hicks.
“Isso é o que chamamos de digitalizador”, diz ele, apontando para uma pequena caixa dentro do caixote preto.
“Ele está transformando o sinal analógico em algum tipo de formato digital e, posteriormente, podemos convertê-lo em velocidade, metros por segundo ou aceleração.”
Ao colocar o dispositivo no chão, ele me mostra minutos depois os enormes picos que aparecem quase em tempo real no gráfico de tremores, que ele pode consultar online.
Ter vários dispositivos em campo significa que ruídos acidentais, de carros passando, por exemplo, podem ser descartados. Só quando os tremores aparecem uniformemente em vários monitores sísmicos é que indica um terremoto.
Hicks e os colegas ajudaram a instalar as cinco unidades do dispositivo, de propriedade da British Geological Survey, no verão de 2018. E desde então estão monitorando os sinais da área.
Mas, ao contrário de Pohang, não parece haver algo fora do normal aqui.
Quase todos os 90 terremotos que Hicks detectou nos últimos oito meses são pequenos, com magnitude inferior a 1. E estão ocorrendo a uma profundidade relativamente baixa, a cerca de 2,5 km abaixo do solo – mas não tão superficial quanto a perfuração, a cerca de 700m ou 800m.
Além disso, os terremotos ocorreram distribuídos pela região – conhecida como Bacia de Weald – e não de maneira agrupada perto do local da perfuração.
“Acreditamos que seja coincidência”, diz ele.
E embora ele ache que os tremores não são induzidos pelo homem, não deixam de ser eventos interessantes. Terremotos como esse, em tão pouca profundidade, não costumam ser registrados com uma resolução tão alta no Reino Unido.
“Independentemente da causa, ainda é uma sequência interessante”, afirma.
Enquanto andamos pelo campo, perto do epicentro do maior terremoto, encontramos Jackie Wilson, que está passeando com o cachorro. Quando o terremoto de magnitude 3,1 aconteceu em fevereiro, ela conta que seu gato “pulou da cama”.
“Alguém solicitou que os moradores assinassem uma petição contra a perfuração que estava em andamento”, acrescentou. “Acho que foi quando tudo começou, não foi?”
Hicks recebeu e-mails, telefonemas e tuítes de outros moradores igualmente intrigados com o que estava acontecendo. Mas, por enquanto, ele mantém a conclusão de que a causa dos terremotos é natural.
Algumas semanas depois que nos encontramos, ele e os colegas publicaram na internet os resultados preliminares da investigação.
“No geral, não encontramos indicadores nos parâmetros do terremoto que sugiram fortemente que foi induzido”, escreveram.
Mas o receio da população de que os tremores possam ser causados pelo homem está se tornado algo cada vez mais comum em todo o mundo. Especialmente quando atividades geotérmicas ou de perfuração acontecem no mesmo local dos terremotos.
As pessoas estão claramente se acostumando com o conceito de atividade sísmica antropogênica, que pode ser induzida ou ativada pelo homem.
Esta última é uma condição ligeiramente diferente, na qual os terremotos são causados principalmente pela atividade tectônica, mas a atividade humana desempenha um papel na maneira como acontecem.
É natural que a população tenha preocupações, diz Francesco Grigoli, do Instituto Federal de Tecnologia de Zurique. na Suíça. Ele estuda as ferramentas usadas pelos detetives de terremoto para descobrir a causa dos abalos sísmicos.
“Não existe uma receita padrão para identificar ou discriminar qualquer evento”, explica.
Grigoli e seus colegas analisaram o terremoto de Pohang menos de um ano após ter abalado a cidade, mas estavam limitados a dados sísmicos públicos de uma estação japonesa, a muitos quilômetros do epicentro, e na época não tinham acesso às informações da NexGeo sobre a perfuração.
Ele argumenta que a disponibilização de mais dados pode fazer uma enorme diferença quando se trata de determinar se um terremoto é antropogênico ou não.
Além disso, a resolução do monitoramento sísmico melhorou bastante. Se tiverem interesse, as empresas de perfuração podem hoje em dia usar dispositivos de escuta altamente sensíveis que ouvem “cada estalo”, acrescenta James Verdon, da Universidade de Bristol, no Reino Unido.
“Isso nos fornece milhares, ou até mesmo centenas de milhares, de pontos de dados com os quais podemos fazer uma avaliação muito mais detalhada do risco sísmico”, explica.
Um artigo publicado no início do ano passado descreveu como o monitoramento microssísmico aparentemente ajudou a reduzir ao mínimo a atividade sísmica induzida por fluidos em um projeto geotérmico na Finlândia.
Nesse caso, a equipe escutou atentamente a atividade sísmica em pequena escala, o que a levou a diminuir ocasionalmente a taxa de injeção de fluido ou aguardar períodos mais longos para o bombeamento. Os autores do artigo acreditam que isso afastou o risco de qualquer abalo mais sério.
Há, no entanto, quem nunca vai se sentir à vontade com a ideia de perfurar próximo a locais populosos. As possíveis consequências, argumentam, são arriscadas demais, mesmo que a probabilidade de provocar um grande terremoto seja pequena.
Mas os detetives do terremoto podem, em teoria, ajudar a avaliar a situação durante a perfuração, não apenas após a ocorrência de um terremoto, e disparar o alarme caso a perfuração se torne perigosa.
Ao ouvir atentamente o que o solo tem a dizer, as empresas e os governos podem estar melhor preparados para reagir – antes que seja tarde demais.