Império do WhatsApp: imediatismo que pode gerar ansiedade

Excesso de uso da plataforma de comunicação instantânea vem se tornando um problema a usuários

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A multiplataforma de mensagens instantâneas e chamadas de voz e de vídeo WhatsApp ainda não era onipresente nas telas dos smartphones dos brasileiros e tampouco era tão poderosa e versátil quando, em 2009, Telma Oeueing, 32, começou a utilizá-la. À época, a ferramenta era oferecida apenas como uma alternativa às mensagens de texto SMS com a vantagem de custar pouco. Com o tempo, mais e mais pessoas passaram a fazer uso do aplicativo e logo começaram a surgir os primeiros grupos, como os de colegas da faculdade ou do trabalho e os de familiares. Então, à medida que, diuturnamente, notificações começaram a se avolumar, tornou-se comum, para ela, a sensação de sentir-se pressionada a acompanhar as intermináveis conversas em diferentes grupos e a responder mensagens de amigos e conhecidos 24 horas por dia, sete dias por semana.

Sentindo-se cada vez mais sufocada, a mestranda em educação chegou a um ato extremo: apagou sua conta no aplicativo neste ano, quando, por conta da pandemia, sentiu que a frequência das conversas pelo mensageiro havia se ampliado exponencialmente. Contudo, o período de abstinência não durou muito – o que, na opinião dela, só prova como se instalou no país uma certa dependência das pessoas em relação à plataforma, que é utilizada por pelo menos 120 milhões brasileiros. Os dados são do próprio Facebook, que desembolsou a bagatela de US$ 16 bilhões na operação de compra do WhatsApp em 2014.

De fato, a experiência de uso da ferramenta – que tem como principal apelo a rapidez, o baixo custo e a praticidade na comunicação – pode se tornar geradora de estresse e de ansiedade, como ocorreu no caso de Telma. “A sensação de constante disponibilidade e de cobrança por respostas tem impacto geral no bem-estar mental momentâneo e, no longo prazo, nas relações afetivas e na saúde”, observa o doutor em psicologia social Cláudio Paixão Anastácio de Paula, lembrando que o problema não é a tecnologia em si, mas a forma como a chamada “cultura da urgência” , em que se espera imediata reação a qualquer estímulo, foi potencializada neste canal. “O WhatsApp invadiu a vida das pessoas de forma que, hoje, tudo acaba se tornando um grupo na plataforma”, completa ele.

Tanto que, hoje, é difícil responder perguntas simples sobre o uso que fazemos do aplicativo. Enfim, quanto tempo dedicamos a responder amigos, colegas e outros contatos por meio do serviço e quantas vezes checamos as suas notificações diariamente? Em quantos grupos estamos e com quantos interagimos rotineiramente? Essas questões evidenciam como se tornou difícil quantificar o uso do WhatsApp. Mas as respostas para elas não indicam, necessariamente, um uso problemático da ferramenta – afinal, há quem lide bem com o aplicativo mesmo se a frequência de utilização for mais assídua. Neste sentido, outras perguntas tornam mais perceptíveis indícios de uma relação abusiva com a plataforma. No fim das contas, como nos sentimos quando uma mensagem não é respondida imediatamente? E que sensação temos ao deixar alguém sem resposta?

MEDO DE REJEIÇÃO SE ASSOCIA À CULTURA DA URGÊNCIA 

Ocorre que, sem fazer uso moderado do mensageiro, a sensação de eterna cobrança que Telma relata vai resultar em um estado de alerta contínuo, gerando estresse. Por isso, não raro, a demora em obter uma resposta pode implicar em sentimentos de angústia e de raiva, por exemplo.

É como se não pudéssemos relaxar, explica Anastácio de Paula. Daí, o corpo reage liberando diversos hormônios, entre eles o cortisol, aumentando a pressão sanguínea e reduzindo as funções digestivas para que descargas de energia sejam enviadas para os músculos. Mas essa operação do organismo deveria ocorrer apenas esporadicamente. “É como se o corpo se preparasse para lutar ou para fugir”, exemplifica. E, obviamente, estar em o combate ou a fuga continuamente é algo que vai gerar esgotamento.

Há ainda outros elementos que potencializam esse fenômeno. “Estamos habituados a ter soluções rápidas. Está tudo a um clique. O que pode repercutir em uma baixa tolerância à frustração. Além disso, naturalizamos a exigência por essa velocidade por respostas, tanto por parte do outro quanto em relação a nós mesmos”, examina a psicóloga clínica Ellen Morente, também sublinhando que o problema não está no WhatsApp em si, mas do uso que se faz dele.

Ela lembra que uma mensagem sem resposta imediata pode gerar insegurança e medo de rejeição entre os interlocutores. Por um lado, quem aguarda o retorno pode criar fantasias negativas – “pode pensar: ‘Não me responde porque não gosta de mim’, por exemplo” –; por outro, quem ainda não respondeu pode se sentir pressionado e também imaginar consequências danosas para aquele ato – “pode imaginar: ‘Se eu não responder rápido, este interlocutor vai ficar com raiva de mim’, ou variações desse pensamento”.

A PROLIFERAÇÃO DE GRUPOS E AS FRONTEIRAS BORRADAS ENTRE DIFERENTES CONTEXTOS SOCIAIS 

Detendo-se a analisar a dinâmica social que se impõe nos grupos – muitos dos quais surgem com propósitos muito específicos e possibilitam, entre outras coisas, a democratização da informação –, o psicólogo Cláudio Paixão Anastácio de Paula lembra que há uma nivelação de diversas dimensões da vida no aplicativo. Dessa maneira, o sujeito passa a conviver com grupos de trabalho, amigos ou família em um mesmo ambiente, tornando mais tênue as demarcações sociais de cada situação.

Além disso, a lida com o excesso de notificações pode acentuar a já descrita sensação de constante cobrança por atenção. “Notamos que parte dos usuários esáo em diversos grupos, mas buscam desabilitar as notificações daqueles que menos frequentam. Mesmo assim, quando abre o aplicativo, se depara com dezenas e até centenas de mensagens”, diz. Acompanhar tantas conversas parece humanamente impossível. Em vez de proximidade e de intimidade, chega-se a uma sensação de relações superficiais, que geram frustração por não serem suficientes, critica o estudioso.

A psicóloga Ellen Moronte adiciona outra problemática: “Algumas pessoas têm dificuldade em sair de grupos e ficam mesmo a contragosto porque entendem que a sua saída pode ser mal interpretada, entendida como um posicionamento contra aquelas pessoas, por exemplo”. Na linha do que pontua Anastácio de Paula, ela lembra que esse borrar de fronteiras entre as diversas esferas sociais deixa algumas pessoas à vontade para acionar seus contatos a qualquer dia e horário. “Não é incomum que um paciente escreva para seu médico em um domingo à noite para relatar algo, mesmo que não se trate de uma urgência”, exemplifica.

“COM A PANDEMIA E O ISOLAMENTO SOCIAL, ESSA SITUAÇÃO SE AGRAVOU AINDA MAIS” 

De forma geral, foi esse conjunto de fatores que fez Telma se afastar da ferramenta. Ela se deu conta que o WhatsApp era a principal ferramenta de conversa e de organização de diferentes projetos que participava. E mesmo que tivesse deixado de fazer parte da organização, sentia que seria indelicado sair do grupo e acabava permanecendo e interagindo, chegando a tirar dúvidas dos participantes.

“Eu já vinha de um incômodo por chegar muita informação sempre. Com a pandemia e o isolamento social, essa situação se agravou ainda mais. A vida estava girando online. E, quando estamos online, é presente essa ideia de que todo mundo está disponível o tempo todo e que devemos também estar”, reclama. “Como é só uma mensagem, quem está enviando não pensa que a outra pessoa pode estar já saturada de demandas. Chegou um dia em que senti fisicamente essa ansiedade”, cita. Foi quando decidiu apagar a sua conta no aplicativo.

Quando voltou para o WhatsApp, Telma já estava fora dos diversos grupos que anteriormente fazia parte, o que ajudou na lida com a ferramenta. Além disso, ela desabilitou as notificações e só vê as mensagens quando abre o aplicativo, algo que, como 93% dos usuários de smartphone no Brasil, faz todos os dias – conforme pesquisa Panorama Mobile Time/Opinion Box do ano passado.

ESTRATÉGIAS. ELLEN MORONTE ARGUMENTA QUE NÃO EXISTEM FÓRMULAS ÚNICAS QUE POSSAM MELHORAR A RELAÇÃO COM O APLICATIVO, LEMBRANDO QUE CADA INDIVÍDUO DEVE AVALIAR MEDIDAS QUE POSSA ADOTAR PARA MANTER UMA RELAÇÃO SAUDÁVEL COM A TECNOLOGIA. EM ALGUNS CASOS, QUANDO POSSÍVEL, ELIMINAR AS NOTIFICAÇÕES – PRINCIPAIS ESTÍMULOS PARA A CHECAGEM DE NOVAS CONVERSAS – E VERIFICAR O MENSAGEIRO APENAS EM ALGUNS HORÁRIOS PODE SER UMA INICIATIVA OPORTUNA. OUTRA ESTRATÉGIA É ADOTAR LINHAS DIFERENTES, UMA PARA O TRABALHO E OUTRA PARA AS RELAÇÕES PESSOAIS. MAIS UMA AÇÃO FUNCIONAL É DEIXAR DE LEVAR PARA A CAMA O CELULAR.

CULTURA DA URGÊNCIA FACILITA DISSEMINAÇÃO DE NOTÍCIAS FALSAS

Desde os anos 90 se discute a chamada cultura da urgência, que se constituiu a partir de ambientes corporativos e rapidamente foi incorporada à rotina social.  “É como se tudo precisasse de uma respostas imediata. Logo, o fato de eu tomar ciência de alguma coisa já implica que eu precise agir e reagir a isso prontamente”, expõe Cláudio Anastácio de Paula. Uma dinâmica que é, portanto, anterior à popularização dos mecanismos de troca de mensagens instantâneas, mas que encontrou neles terreno fértil.

E esse imediatismo está entre as características que especialistas apontam como potencializadoras da disseminação de informações falsas, pois somos chamados a reagir a tais notícias antes mesmo de saber se são mesmo confiáveis. Além disso, se aproveitando dessa vulnerabilidade sociocultural, há empresas que se especializaram no disparo em massa de mensagens, permitindo, inclusive, segmentação do público. Uma prática que, diga-se, fere as normas de uso da plataforma.

Neste aspecto, é importante lembrar que, de acordo com pesquisa realizada a pedido da Câmara dos Deputados e do Senado Federal em 2019, 79% dos brasileiros usam o WhatsApp como principal fonte de informação. Veículos tradicionais e redes sociais aparecem em segundo e terceiro lugar, respectivamente.

NA TRINCHEIRA CONTRA A DESINFORMAÇÃO

Hoje, há pessoas que, individualmente, encampam a luta contra a disseminação de mentiras nas redes sociais. É o caso da jornalista Camilla Feltrin, 28. Quando o surto do novo coronavírus chegou ao país, ela por muito tempo se desdobrou e buscou desmentir notícias falsas, escolhendo como trincheira justamente o WhatsApp.

Estimulada por uma amiga, ela criou uma lista de transmissão e passou a disparar, todos os dias, um boletim, o Coronanews, com informações verdadeiras sobre boatos que circularam na web.

Camilla começou a usar a plataforma em 2012. “Espera. Estou atravessando a rua”, ela lembra de ter escrito a um amigo. Uma frase que tem um quê de revolucionário: antes do WhatsApp, a comunicação por escrito – como em cartas ou emails – era pensada como que para alguém que pudesse estar ausente. Mas mesmo ela, que criou um projeto que rodava especificamente no mensageiro, toma uma série de cuidados para que o uso não se torne problemático.

“Eu não recebo notificação de nada e, para o trabalho, tenho outra linha. Acho que ajuda a diminuir a ansiedade”, garante, mencionando que compreende que exista uma expectativa para que as respostas sejam respondidas prontamente. Uma cobrança com a qual lida bem.

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