Joe Biden venceu as eleições dos EUA e esse é o tema do primeiro texto da nova coluna AGROGLOBAL do site de VEJA. Vamos analisar o impacto de Biden sobre agronegócio, comércio, clima e Amazônia, mostrando porque Biden é a melhor escolha para o agro brasileiro.
A primeira grande mudança da gestão Biden nas relações internacionais será o resgate da liderança que os Estados Unidos sempre exerceram na coordenação multilateral do mundo, que se inicia já na independência dos EUA com a ação diplomática de Benjamin Franklin e os demais Founding Fathers contra o colonialismo europeu.
Para entender o papel histórico dos EUA no mundo, vale ler um livro magnífico que acaba de ser lançado: America in the World: A History of U.S. Diplomacy and Foreign Policy, de Robert Zoellick, que foi representante de comércio dos EUA (USTR) de 2001 a 20005 e depois Presidente do Banco Mundial. O livro analisa o papel que Franklin, Hamilton, Jefferson, Adams, Lincoln, os Roosevelts, Woodrow Wilson, Cordell Hull, Kennedy, Reagan, Bush e outros “líderes pragmáticos” tiveram na construção da diplomacia e da política externa dos EUA. A obra merece ser realmente lida nesse momento crucial e conflitivo da democracia americana.
No final da 2ª guerra, o mundo pedia maior coordenação multilateral em temas como garantia da paz, comércio, finanças, desenvolvimento e outros. Os Estados Unidos assumiram posição central na criação de diversas organizações internacionais para promover paz, direitos humanos e solução de conflitos (ONU), finanças e desenvolvimento (FMI e Banco Mundial), comércio (o acordo do GATT, que depois virou a OMC – Organização Mundial de Comércio), saúde pública (OMS – Organização Mundial de Saúde) e muitas outras.
O momento turbulento e polarizado que vivemos hoje exige o aprimoramento da capacidade de coordenação dos países em novos temas como meio ambiente, mudança do clima, segurança biológica (contenção de pandemias), saúde pública, segurança cibernética, migração, anticorrupção, transparência e outros.
Com o America First, Trump deu as costas para mundo e abandonou o papel histórico de concertação dos EUA. Em comércio, por exemplo, para agradar o seu público interno Trump propôs medidas enérgicas para “zerar” os principais déficits comerciais que os EUA mantinham no mundo, iniciando negociações país a país como se o comércio fosse um jogo de soma zero, que não é.
Pouco a pouco, Trump retirou os EUA da Parceria Transpacífico (TPP), um extraordinário acordo comercial ligando 12 países americanos e asiáticos do Pacífico. Depois repaginou o NAFTA à sua maneira, enfraqueceu a OMC ao se recusar a nomear juízes para o órgão de solução de controvérsias e retirou os EUA da Convenção do Clima. Trump voltou-se para dentro do país, confrontando não apenas os novos inimigos do Oriente, como a China, mas também os seus vizinhos e aliados mais tradicionais do Ocidente. Na minha opinião, não deu certo.
Não há dúvida que Joe Biden vai seguir priorizando acima de tudo os interesses domésticos americanos, e principalmente a recuperação econômica do país. Mas, ao contrário de Trump, ele construirá a sua política externa a partir das medidas internas que serão adotadas, reduzindo o tensionamento e aumentando a concertação internacional.
É neste contexto que enxergo a possibilidade de novas formas de diálogo entre os EUA e a China. Com certeza a rivalidade EUA-China veio para ficar e não vai terminar com a eleição de Biden, até porque a China continuará crescendo rápido e ameaçando a hegemonia americana. Ao final de 2021, a China estará 10% maior do que no fim de 2019. Os EUA estarão menores.
No agronegócio, não há dúvida que o Brasil se beneficiou da guerra comercial EUA-China que começou logo após as eleições de Trump em 2017, e que pode ser prejudicado por um acordo tácito entre as duas maiores potências do planeta. Mas comemorar guerras e disputas hegemônicas nunca foi uma boa ideia para quem só atua em batalhas laterais. Prefiro acreditar que a construção de regras multilaterais comuns, que valem para todos, continua sendo a melhor opção do planeta. Podemos perfeitamente incrementar nossas parcerias estratégicas tanto com os EUA como com a China, rejeitando discriminações e a política de comércio dirigido e administrado proposta por Trump, que espero não será seguida por Biden.
Dentre as novas políticas de Biden, a que mais deve impactar o Brasil é uma nova postura dos EUA em relação ao tema da mudança do clima, radicalmente diferente da linha seguida por Trump. Meio ambiente, mudança do clima, promoção de fontes renováveis de energia e taxação de carbono estarão no centro da agenda de Biden. Os EUA vão retornar ao Acordo de Paris, colocando o tema da mudança do clima no centro da sua política externa, comercial e de segurança nacional, o que certamente incluirá uma forte pressão para reduzir o desmatamento no Brasil.
Muitos dirão que essa é uma agenda negativa para o Brasil. Eu prefiro acreditar que, na toada das pressões comerciais que o agro já vem sofrendo na região Norte, a eleição de Biden apenas reforça a necessidade de completarmos a “lição de casa” que estamos devendo para o mundo há décadas. Estima-se que 95% do desmatamento brasileiro seja ilegal e, portanto, associado ao não-cumprimento da própria legislação brasileira. É nossa obrigação resolver esse problema, que começa com a necessidade de regularização fundiária das regiões norte e nordeste do país, que já dura décadas. Segue-se o problema da regularização ambiental, que ainda não foi realizada, a despeito de o Código Florestal já ter completado o seu 8º ano de vida.
A verdade é que a agricultura brasileira é ao mesmo tempo vilã, vítima e solução no tema da mudança do clima. “Vilã” por estar associado ao desmatamento ilegal, que já atinge mais de 10 mil km2 por ano no Brasil. “Vítima” porque a agricultura vem sofrendo com eventos extremos e grandes instabilidades climáticas, como vimos esse ano no país. “Solução” porque acumulamos grandes ganhos de produtividade e dispomos de uma matriz energética diversificada e limpa, composta por diversos tipos de biocombustíveis e energias renováveis, fazemos 2 a 3 safras por ano e muitas outras conquistas caracterizam a nossa agricultura como de “baixo carbono” em relação aos nossos concorrentes.
A pecuária de corte será o setor mais pressionado pela eleição de Biden, pelo fato de que a cria de bezerros é a primeira ocupação agropecuária em áreas recém desmatadas do bioma Amazônico. Mas os biocombustíveis brasileiros, como o etanol de cana-de-açúcar e o biodiesel de oleaginosas, podem ganhar bastante espaço na agenda internacional com a adesão dos EUA ao Acordo de Paris e a renovada pressão pela substituição de energias fósseis por energias renováveis, tema amplamente vocalizado por Biden durante a campanha. Vale lembrar que 73% das emissões de gases de efeito estufa responsáveis pela mudança do clima vem do setor de energia e transportes, e menos de 7% de desmatamento e mudanças no uso da terra.
Em suma, creio que a eleição e Biden levará o governo brasileiro a abrir novos canais de interlocução com o novo governo americano. Deveria também buscar uma equidistância mais prudente da sua política comercial com os EUA e com a China, fortalecendo as duas maiores parcerias estratégias do país. Apesar de os EUA serem os nossos principais concorrentes no agronegócio global, há muito espaço para ampliar a cooperação com aquele país em temas como segurança alimentar global, inovação, bioenergias e no reforço da coordenação multilateral.
Creio que a principal lição que deveríamos aprender com o retorno dos Democratas ao poder nos EUA é parar de insistir em ver o mundo como “cruzadas maniqueístas” de uma luta permanente do bem contra o mal, entre supostos poderes opostos e incompatíveis. Em vez de louvar amigos e atacar inimigos imaginários, melhor faríamos em identificar claramente quais são os nossos interesses externos e desafios imediatos. Se fizermos isso, veremos que o nosso maior desafio é simplesmente fazer direito a “lição de casa”. Isso vale para as reformas internas prometidas, e ainda não realizadas. Vale também para os problemas ambientais e fundiários do bioma Amazônico, que agora terão de ser resolvidos, para o bem e para o mal.