O infectologista Jaime Rocha decidiu no último dia 30 gravar um vídeo na esperança de que ele se espalhasse pelos grupos de WhatsApp de Curitiba para conscientizar a população.
Começou dizendo que não queria falar mais sobre a covid-19 ou da importância de lavar as mãos ou de usar máscara. “Tenho certeza que vocês já sabem de tudo isso”, disse.
O médico queria avisar que estava começando a faltar leitos para pacientes que ficaram doentes por causa do novo coronavírus na capital do Paraná, onde ele trabalha.
“Estamos abrindo mais leitos, abrindo mais leitos… Mas o comportamento das pessoas faz com que o número de casos seja de tal tamanho que nós não estamos dando conta.”
Rocha fez então um alerta: se a população não colaborar, aderindo às medidas de controle do coronavírus e evitando aglomerações, o sistema de saúde não suportaria a demanda, pessoas podem morrer por falta de atendimento.
Ele terminou com um apelo: “Não estou sendo alarmista, estou sendo realista, e pedindo a contribuição de todos mais uma vez”.
Àquela altura, a pandemia de covid-19 havia fugido do controle no Paraná.
O contágio voltou a crescer
A taxa de transmissão do vírus, que estava desde meados de agosto abaixo do patamar mais perigoso, subiu de novo.
Esse índice indica quantas pessoas são infectadas em média por quem já está doente. Se ficar abaixo de 1, o surto caminha gradualmente para o fim. Acima disso, ganha cada vez mais força, e o número de doentes cresce em escala geométrica.
A média móvel da taxa de transmissão leva em consideração os 14 dias anteriores do índice. Ela é considerada por epidemiologistas o valor mais adequado para medir a gravidade da pandemia, porque corrige distorções pontuais dos dados causadas por atrasos e outras falhas na divulgação de resultados dos exames que confirmam os casos.
No Paraná, esse índice voltou a ficar acima de 1 em 6 de novembro e não parou de aumentar até 19 de novembro, quando atingiu o pico de 1,36.
Naquele momento, 100 pessoas contaminavam outras 136, que, por sua vez, infectavam mais 185 e assim por diante.
Não demorou para isso se refletir no número de pessoas que buscavam atendimento médico.
Os casos explodiram
A transmissão elevada leva algum tempo para ser sentida nos postos de saúde e hospitais por causa da natureza do coronavírus.
Uma pessoa infectada demora em média sete dias para sentir os primeiros sintomas. A experiência dos profissionais de saúde mostra que os pacientes costumam depois disso levar mais alguns dias para procurar um médico.
Mas o contágio mais intenso acaba inevitavelmente se transformando em mais atendimentos nos pronto-socorros, e isso é espelhado pelas estatísticas oficiais.
Foi assim no Paraná a partir de 12 de novembro. Naquele dia, a média móvel de casos confirmados ainda era de 1.233, o mesmo patamar das semanas anteriores. Mas, oito dias depois, havia quase triplicado, para 3.569.
Passaram-se mais nove dias, e veio um novo pico: 3.612. Este é o recorde da pandemia no Estado até agora e 75% maior do que o maior índice registrado antes de novembro começar (2.056 casos, em 6 de agosto).
Os hospitais lotaram
Assim como o contágio mais intenso se transforma em mais casos, o maior número de casos uma hora deixa os hospitais lotados. É o que está acontecendo no Paraná.
“Os pacientes estão levando de seis a oito horas para conseguir atendimento nos pronto-socorros e ficam de um a dois dias nas enfermarias até conseguirem ser internados”, diz Jaime Rocha, que trabalha em dois hospitais privados de Curitiba.
O número de pacientes com covid-19 ou suspeita da doença que esperam por uma vaga de enfermaria ou UTI em hospitais públicos de Curitiba ou da região metropolitana da cidade vem crescendo.
A fila chegou a 120 pessoas na última quarta-feira (2/11), segundo o governo de Ratinho Jr. (PSD).
A Secretaria Estadual de Saúde diz que elas recebem assistência médica em outras unidades de saúde enquanto aguardam e que está ampliando o total de leitos da rede.
A taxa média de ocupação no Estado era de 89% na sexta-feira (4/11), mas chegava a 96% na capital, onde hospitais já anunciam restrições de atendimento por não estarem dando conta da demanda.
“A gente já esperava um aumento de casos”, diz Rocha, “mas não tão cedo e não tão rápido.”
O que aconteceu?
Fechou cedo demais?
“O Paraná fechou tudo cedo demais”, avalia o epidemiologista Nelson Arns, que é coordenador internacional da Pastoral da Criança e mora em Campo Largo, na região metropolitana de Curitiba, e trabalha na capital.
As primeiras infecções no Estado foram confirmadas em 12 de março, quando havia 200 casos no Brasil. O governo paranaense decretou medidas de isolamento social alguns dias depois.
As aulas foram suspensas em escolas e universidades públicas, e foi recomendado o mesmo para a rede privada. Teatros, cinemas, bibliotecas e museus foram fechados. Eventos culturais não puderam mais ser realizados.
Servidores passaram a trabalhar de casa, e foi pedido à população que não saísse às ruas, entre outras medidas que buscavam conter a epidemia.
“Não havia nem transmissão comunitária no Estado ainda”, diz Arns, que é doutor em saúde pública. O epidemiologista faz referência ao termo que define quando um vírus está circulando livremente entre as pessoas.
Se isso acontece, o contágio não ocorre mais só no contato entre pessoas que já convivem, como familiares e amigos, mas também em situações comuns do dia-a-dia, entre desconhecidos.
Arns opina que, em um primeiro momento, não deveriam ter sido aplicadas medidas de isolamento social, mas de distanciamento, que são menos restritivas.
“A carga ficou pesada demais e, de certa forma, insuportável, principalmente para os jovens”, diz.
‘Testou bem, mas não o suficiente’
O secretário de Saúde do Paraná, Beto Preto, diz que o Estado não foi o único a tomar medidas desse tipo na época e afirma que o governo achou melhor tomar a frente do processo.
“As prefeituras começaram a correr, de forma desorganizada, tomando decisões individuais. Entendemos que as medidas tinham que ser generalizadas”, afirma Preto.
O secretário diz ainda que o Estado é um dos que mais testam no Brasil. “Somos o primeiro ou segundo em exames PCR”, afirma Preto.
Esse tipo de exame detecta a presença do vírus no organismo para confirmar se uma pessoa está ou não doente e deve ser usado em uma testagem ampla, diz a Organização Mundial da Saúde (OMS), para identificar os casos e interromper a cadeia de transmissão do vírus.
Os dados oficiais sobre o número de testes feitos a cada 100 mil habitantes mostram de fato que o Paraná testou bem acima da média brasileira. Em alguns meses, o índice local foi o dobro do nacional.
Mas o Estado ainda assim apresenta taxas 70% a 85% menores do que os dos países que mais testam no mundo, como França, Alemanha, Reino Unido, Estados Unidos e Rússia.
“Dentro da realidade do país, o Paraná testou bem, mas, em relação ao que deveria ser feito, segundo a OMS, não foi o suficiente”, diz Arns.
Pandemia longa, população exausta
“Você vai achar opiniões das mais diversas sobre o que foi feito, mas até agora viemos controlando a pandemia”, afirma o secretário Beto Preto.
O epidemiologista Nelson Arns concorda que houve impacto positivo da quarentena precoce do Estado.
Isso conseguiu conter uma explosão de casos em um primeiro momento e evitar um colapso do sistema de saúde. O Paraná chegou a ser um dos menos afetados no país pelo coronavírus.
A menor intensidade da epidemia local e a piora em outras partes do país fizeram com que tivesse apenas o 22º maior número de casos entre os 27 Estados e o Distrito Federal em meados de junho. Mas, então, o número de casos começou a aumentar.
Ao mesmo tempo, a crise arrefeceu em outros Estados, e o Paraná foi subindo posições no ranking da pandemia brasileira, mesmo com o endurecimento temporário das medidas de isolamento por 14 dias em julho.
Em agosto, já era o 14º Estado com mais casos. Dois meses depois, era o 10º. Hoje, está em 8º, com mais de 294 mil infecções confirmadas.
“Tudo isso levou a uma exaustão”, destaca Arns. Um dos efeitos disso é que é cada vez mais comum o descumprimento das medidas de controle da pandemia, diz o epidemiologista.
“Há uma parte da população que tem cumprido, mas também tem os negacionistas e aqueles para quem você explica os cuidados e não adianta. Aí você liga para a casa do paciente para dar o resultado positivo do exame e descobre que ele está na rua. Ou liga para fazer o acompanhamento de quem está doente e ouve que a pessoa foi visitar os pais, porque achou que não tinha problema por não estar se sentindo mal.”
O paranaense não ficou em casa
Os dados da empresa In Loco, que faz o monitoramento do isolamento social pelo país com base nos dados de geolocalização de celulares, apontam que, mesmo antes, o paranaense não ficou em casa.
O índice mais alto registrado no Estado nunca passou de 45% em toda a pandemia e, desde junho, está abaixo de 40%. Em setembro e outubro, chegou ao patamar mais baixo, 36%. Voltou a subir um pouco, para 38%, em novembro.
“Se isso fosse suficiente, a gente não estava nesse caos”, avalia Viviane Hessel, consultora da Sociedade Brasileira de Infectologia que atua no Paraná.
Ela diz que ouve sempre histórias de pacientes com covid-19 que saíram de casa ou de quem acha que por ser jovem ou não ter outras doenças podem pegar que vai ficar tudo bem.
“Elas esquecem que podem passar a doença para outras pessoas”, afirma Hessel, que é presidente da Associação Brasileira dos Profissionais em Controle de Infecções e Epidemiologia Hospitalar.
Além disso, um fator positivo para o Paraná agora se vira contra o Estado. Como havia sido menos afetado antes, o número de pessoas que já foram infectadas ainda é baixo.
Esse índice chega a no máximo 20%, aponta Hessel. Com isso, menos gente tem imunidade contra o coronavírus, que se espalha facilmente.
Soma-se o relaxamento de medidas em Curitiba no final de setembro com a tendência de queda de casos até então, uma sequência de feriados em outubro e novembro e as eleições municipais.
“Os governos foram flexibilizando. Até cinemas e museus reabriram. Tudo isso deu uma sensação que a crise havia passado”, diz Nelson Arns.
“As pessoas relaxaram”, concorda Hessel, “e a gente viu uma movimentação bem maior do que poderia esperar.”
Medidas mais duras para evitar o pior
Tudo isso contribuiu para o aumento de casos nas últimas semanas, o que obrigou a um retrocesso no programa de reabertura da capital, que voltou a aplicar mais restrições.
A Prefeitura suspendeu o funcionamento de bares, casas noturnas e festas. Restaurantes, shoppings e o comércio de rua continuam funcionando, mas com restrição de horários.
Foi adotado ainda em todo o Estado um toque de recolher, entre 23h e 5h, até o próximo dia 17. O governo estuda fechar praças e parques. Também recomendou que os servidores estaduais passem a trabalhar de casa.
“Estamos tentando reduzir a circulação do vírus, e especialmente impedindo o funcionamento de bares e baladas, porque 30% dos novos casos estão entre os mais jovens”, diz o secretário Beto Preto.
Mas ele reconhece que a aplicação destas medidas são cada vez mais difíceis com o prolongamento da pandemia.
“Há, sim, uma exaustão. São nove meses, né? As pessoas querem ter a sua vida normal de volta. Mas estamos ampliando as ações de conscientização.”
A médica Viviane Hessel diz que a experiência até agora mostra que a pandemia não vai acabar só com o isolamento social. “Mas vai ser ainda mais difícil sem isso”, afirma.
O infectologista Jaime Rocha explica que as medidas contra a pandemia costumam levar de duas a três semanas para reduzir o número de casos. “A gente não vai conseguir frear esse trem desgovernado do dia para a noite.”
Enquanto isso, ele trabalha e espera que as medidas tenham sido tomadas a tempo e que os alertas dele e de seus colegas surtam efeito para que o Paraná consiga evitar o pior.