A outra epidemia: EUA têm recorde de mortes por overdose em ano de covid-19

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Enquanto as atenções continuam voltadas para a covid-19, que já deixou mais de 340 mil mortos nos Estados Unidos, uma outra epidemia com efeitos devastadores se agrava no país e deverá representar um dos principais desafios de saúde pública para o presidente eleito Joe Biden, que toma posse em 20 de janeiro: as mortes por overdose de drogas.

Segundo dados divulgados neste mês pelo CDC (Centros de Controle e Prevenção de Doenças, agência de pesquisa em saúde pública ligada ao Departamento de Saúde), pelo menos 81,2 mil pessoas morreram por overdose entre junho de 2019 e maio de 2020.

Esse é o maior número já registrado em um período de 12 meses, e representa alta de 18,2% sobre os 12 meses anteriores.

Todas as regiões do país registraram aumento no número de mortes, provocadas principalmente por opioides sintéticos (especialmente fentanil fabricado ilegalmente), com alta de 38,4% sobre os 12 meses anteriores. Também houve aumento nas mortes por overdose de estimulantes como metanfetamina (34,8%) e cocaína (26,5%).

Em algumas cidades, como San Francisco, o número de mortes por overdose de drogas neste ano já é bem maior do que o número de óbitos por covid-19. Até o fechamento desta reportagem, a cidade californiana registrava 182 mortes em decorrência do coronavírus e 621 por overdose.

Quando os dados finais de 2020 estiverem disponíveis, a expectativa é de que este tenha sido o ano mais mortal de uma epidemia que assola os Estados Unidos há décadas e que, segundo especialistas, foi agravada pela pandemia de covid-19.

Apesar de ressaltar que as mortes por overdose já vinham aumentando antes mesmo da chegada do coronavírus, o CDC afirma que a pandemia e as medidas adotadas para conter a doença tiveram impacto negativo.

“O aumento nas mortes por overdose de drogas parece ter sido acelerado pela pandemia de covid-19”, diz a agência. “O maior aumento foi registrado de março a maio de 2020, coincidindo com a implementação de amplas medidas de mitigação da pandemia de covid-19.”

Drogas ilícitas

Epidemia em ondas

Segundo o CDC, mais de 750 mil pessoas morreram por overdose de drogas nos Estados Unidos desde 1999. Especialistas costumam dividir a epidemia de opioides em ondas, a primeira delas iniciada na década de 1990 e provocada por analgésicos opiáceos obtidos com receita médica.

Com o tempo, diante das evidências de que esses remédios contra a dor provocavam dependência e estavam gerando uma crise de saúde pública, médicos passaram a ter mais cautela ao prescrever. Sem acesso a prescrição médica, muitos dependentes começaram a recorrer à heroína, mais barata e fácil de obter, levando a uma segunda onda.

A terceira onda de mortes por overdose começou a partir de 2016, quando opioides sintéticos, especialmente o fentanil fabricado de maneira ilícita, começaram a entrar com força no mercado ilegal de drogas. Inicialmente concentradas na Costa Leste, essas drogas se espalharam por todo o país.

Produzido em laboratórios clandestinos, o fentanil é extremamente potente e muitas vezes usado para adulterar heroína. Há também comprimidos falsificados vendidos como analgésicos e contendo fentanil. Em outros casos, os usuários optam pelo fentanil de maneira intencional.

“(A epidemia de drogas) é semelhante à covid-19. Falamos em mutação do vírus. Mas a crise de opioides também continua evoluindo e se transformando”, diz à BBC News Brasil o professor de medicina Dan Ciccarone, da Universidade da Califórnia em San Francisco.

“Neste momento, enquanto conversamos, está se transformando novamente, desta vez em uma epidemia de metanfetamina. Estamos entrando na quarta onda desta crise”, afirma Ciccarone, que estuda a epidemia de opioides há vários anos.

O agravamento atual da crise ocorre depois de um breve período de melhora. Em 2018, o número de mortes por overdose nos Estados Unidos caiu pela primeira vez em 25 anos. Naquele ano, foram registrados 67.367 óbitos, redução de 4,1% sobre 2017.

Paciente com overdose sendo tratada em ambulância

“As mortes por fentanil ainda estavam crescendo, mas a redução no número de mortes envolvendo analgésicos e heroína levou a essa leve queda em 2018”, diz à BBC News Brasil médico especialista em abuso de drogas Andrew Kolodny, da Universidade Brandeis, no Estado de Massachusetts.

“Eu tinha esperança de que fosse o início de uma tendência positiva. Infelizmente, eu estava errado”, observa Kolodny.

O impacto do coronavírus

As mortes voltaram a crescer em 2019, ultrapassando 70 mil e impulsionadas pelo fentanil fabricado ilegalmente e por outros opioides sintéticos ilícitos. Especialistas acreditam que essa alta, reiniciada no ano passado, tenha sido acelerada pela pandemia de coronavírus.

O impacto só poderá ser completamente analisado quando os dados finais de 2020 forem divulgados, dentro de alguns meses. Mas há várias maneiras pelas quais a pandemia pode ter agravado a crise e interferido na capacidade de tratar os dependentes.

Os lockdowns e medidas de distanciamento adotados para combater o coronavírus levaram a interrupções em serviços sociais e de saúde. Consultas médicas e sessões de aconselhamento em grupo foram reduzidas. O isolamento pode ter levado muitos a usarem drogas sozinhos, sem ter a quem recorrer em caso de overdose, o que aumenta o risco de morte.

Alguns especialistas lembram que a crise econômica e a alta no desemprego afetaram a renda de muitos usuários. Sem dinheiro, podem ter reduzido o uso e, assim, diminuído sua tolerância à droga, o que aumenta o risco de overdose quando voltam a consumir como antes.

“Não questiono que a pandemia de covid-19 tenha tido um grande impacto, já que seres humanos são suscetíveis a problemas de saúde mental durante isolamento”, afirma Ciccarone.

“Mas quero ressaltar que a epidemia de opioides nunca desapareceu. As mortes por overdose voltaram a aumentar em 2019, bem antes do coronavírus. E quando a covid-19 deixar de dominar as manchetes, vamos acordar para o fato de que temos uma crise de opioides contínua e em evolução.”

Ciccarone diz esperar que o novo governo “passe de retórica para ação” ao tratar a epidemia de drogas primeiramente como uma questão médica e de saúde pública.

“(Já) temos boa retórica, que diz que deve ser tratada como uma crise de saúde pública. Mas certamente ainda não foi feito o suficiente”, afirma. “Sabemos o que é necessário fazer. Precisamos de recursos.”

Programa de atendimento a viciados em opioides em Baltimore, em foto de julho de 2020

Desafios para o novo governo

Kolodny também diz que, apesar de atualmente políticos liberais e conservadores concordarem que este é um problema de saúde pública, as medidas adotadas para enfrentar a crise de opioides ainda são insuficientes.

“Hoje ouvimos muito, de ambos os partidos, que este é um problema médico e que os dependentes precisam de tratamento, não de cadeia. E não é só da boca para fora, é sincero. Mas (apesar disso) ainda não estamos tratando como um problema de saúde pública”, afirma.

No início de seu mandato, o presidente Donald Trump declarou a epidemia de drogas uma emergência nacional de saúde e adotou medidas para ampliar o acesso a tratamentos e medicamentos contra dependência, especialmente em áreas rurais.

Seu governo reservou US$ 3,4 bilhões (cerca de R$ 17,7 bilhões) para prevenção e tratamento nos Estados e focou em ações para restringir a oferta de drogas. Nos últimos anos, houve ampliação do uso de naloxona, medicamento para reverter overdoses, e de programas de troca de seringas.

Mas as medidas não foram suficientes para reverter a crise, e o novo governo terá de enfrentar o desafio duplo na área de saúde, com o agravamento da epidemia de drogas ao mesmo tempo em que a pandemia de coronavírus continua a assolar o país.

Durante suas quatro décadas no Senado, Biden assumiu posições que favoreciam medidas duras de lei e ordem no combate às drogas, incluindo longas penas de prisão. Ele teve papel importante na aprovação de leis que, segundo críticos, levaram a disparidades raciais no sistema de justiça. Mas, nos últimos anos, mudou de postura.

Na campanha, Biden falou sobre a luta do filho, Hunter, contra o abuso de drogas. Ele divulgou um plano de distribuir US$ 125 bilhões (cerca de R$ 650 bilhões) para que os Estados invistam em prevenção, tratamento e recuperação, e prometeu ampliar o acesso a tratamentos com medicação, acabar com penas de prisão para uso de drogas e responsabilizar empresas farmacêuticas por seu papel na epidemia.

Especialistas dizem que, para que o número de mortes comece a cair, é necessário um investimento pesado e de longo prazo.

“Precisamos de uma expansão dramática no acesso a tratamento eficaz, e ainda não vimos isso”, ressalta Kolodny. “É necessário que seja mais fácil para um dependente conseguir tratamento do que conseguir drogas.”

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