trânsito e a falta de papel higiênico nas prateleiras ficarão para sempre na memória.
E também a ideia de milhões de pessoas morrendo sozinhas, em hospitais saturados, os rostos exaustos de milhares de médicos, o último adeus pelo Zoom, o súbito fim de projetos de vida, empregos ou casos de amor.
A lista é imensa e cada pessoa pode adicionar tragédias globais, coletivas ou pessoais.
Mas vamos contra a maré: é possível elencar os motivos da esperança que este ano também nos deixou, apesar de tudo? Também aconteceram coisas boas?
Para responder isso, a BBC News Mundo, serviço em espanhol da BBC, entrevistou a acadêmica e escritora americana Rebecca Goldstein, uma das vozes que, a partir da filosofia da ciência e do racionalismo filosófico, têm buscado ao longo dos anos motivos de otimismo nos aspectos mais sombrios da condição humana.
Vencedora da Medalha Nacional de Humanidades, o maior prêmio concedido pelo governo dos Estados Unidos aos intelectuais, Goldstein, também autora de uma dezena de livros, diz que 2020 testou seus limites não apenas como filósofa, mas também como pessoa.
Apesar de tudo, ela garante que o caminho também lhe deixou motivos para acreditar na humanidade, no poder da compaixão e na ciência.
E diz que, embora seja difícil pensar nisso agora, ainda há motivos para ter fé no futuro.
Veja um resumo das razões dela para permanecer otimista e leia, a seguir, os principais trechos da entrevista.
5 coisas boas que 2020 deixa, segundo Rebecca Goldstein
- Meu primeiro motivo parecerá paradoxal: 2020 nos deu esperança porque nos forçou a prestar atenção a alguns dos aspectos mais obscuros de nossa sociedade.
- Os cientistas colocaram sua experiência em alta velocidade para entregar uma vacina para nós em menos de um ano.
- A responsabilidade que as pessoas assumiram umas com as outras durante a pandemia, procurando permanecer seguras, observando as orientações médicas para o uso de máscaras e mantendo distância física ou informando imediatamente todos os seus contatos assim que souberam que foram expostos coronavírus.
- Além da responsabilidade básica para com os outros, todos nós testemunhamos a coragem de inúmeros trabalhadores, alguns dos quais vemos em nossos hospitais e clínicas, correios, escolas e supermercados, e muitos dos quais nunca vemos, mas eles continuam a correr o risco de contrair uma doença fatal para que tudo continue a funcionar para o restante da população.
- É natural tomar como certas as coisas boas de nossa vida. Afinal, são as coisas que precisam ser mudadas que exigem nossa atenção. No entanto, um ano como este nos ensinou como são importantes muitas das coisas que tendemos a esquecer. Para a maioria de nós, no topo da lista estão nossas interações sociais. Vivemos em uma sociedade competitiva que às vezes pode camuflar o quanto precisamos uns dos outros e nos amamos.
BBC Mundo – Em vários de seus motivos para o otimismo, a senhora menciona o fator esperança, que há séculos compõe a narrativa das religiões e das sociedades. Para muitos de nós, a esperança agora é uma vacina, ou um mundo pós-covid. O que 2020 nos ensinou sobre a condição humana e sobre nossa necessidade de esperança?
Rebecca Goldstein – A esperança é uma forma leve de autoengano, mas pode alimentar nossa ambição de melhorar, incitando-nos a melhorar nossas vidas e as dos outros.
Sem uma esperança que nos dê coragem, nunca assumiríamos nossos projetos de longo prazo ou construiríamos nossas relações transformadoras.
Mas eu gostaria de pontuar a diferença entre esperança, que fortalece a coragem, por um lado, e as ilusões, por outro.
Uma das coisas que 2020 nos ensinou, em uma aula implacavelmente avançada, é a importância da distinção entre os dois.
Foi a ilusão que ignorou as advertências dos cientistas sobre a abertura da economia muito rapidamente; a ilusão que defende a “imunidade de rebanho” como se tivesse poderes de afastar o mal; a ilusão de quem se cansou do coronavírus antes que o coronavírus se cansasse de nós…
Nada disso é uma esperança que fortalece a coragem, mas sim uma tentativa de descartar a realidade. E a realidade no final sempre vence. É isso que faz com que se torne realidade.
BBC Mundo – E por falar em realidade, Spinoza, um de seus filósofos preferidos, criticou muitas vezes a ideia de conceber a realidade humana como um “reino dentro de um reino”, ou seja, um mundo que se acredita autônomo dentro da natureza. Por muitos anos, as sociedades ocidentais celebraram que viveram um período relativamente longo e estável em suas histórias. E então veio o coronavírus. Qual você acha que foi a maior lição da pandemia neste ano sobre o lugar da humanidade na natureza?
Goldstein – Spinoza é um professor maravilhoso, que nos ensina a nos acomodar à realidade em vez de imaginar que a realidade nos acomodará. Em seus textos, ele usa o termo natureza como sinônimo de realidade.
A natureza é tudo o que existe e nós fazemos parte da natureza, sujeitos às suas leis. E ainda que Spinoza rejeite algumas de nossas ilusões pessoais mais queridas, sua visão nos concede um lugar privilegiado especial dentro da natureza.
Somos a parte da natureza que pode obter conhecimento sobre ela. Em nós, a natureza chega a conhecer a si mesma!
(…) A natureza que se conhece — ou seja, nós — pode usar seu conhecimento para melhorar a natureza.
Podemos usar nosso status privilegiado como conhecedores da natureza para aprimorar nossa própria espécie, outras espécies e o planeta olorosamente belo que temos o privilégio de habitar.
Portanto, também aqui há esperança: a esperança de uma espécie que permite que a natureza se conheça e se valorize, ao valorizar esse conhecimento.
BBC Mundo – Há também o lado negativo da ação do homem sobre essa natureza: mudança climática, extinção de espécies, migrações em massa, guerras. São ameaças à humanidade tão prováveis (ou mais) do que o coronavírus era há um ano. Como o que vivemos em 2020 pode nos ajudar a enfrentar as ameaças futuras da natureza e as futuras maneiras como nossa espécie ameaça a si mesma e ao planeta?
Goldstein – Na dor e na ansiedade compartilhadas que 2020 nos trouxe estão lições conquistadas com esforço.
Existe a lição de que não podemos mudar a realidade apenas por vontade; a lição de que o futuro não mudará sozinho, mas requer nossos melhores esforços.
Ganhamos também no conhecimento de quão preciosa e frágil é a nossa vida, bem como a das outras espécies, também cheias de dignidade e esplendor e que são reféns das nossas ações.
Depois, há também a responsabilidade pelas gerações futuras, que agora não têm voz para defender seus direitos, mas cujas vidas serão tão importantes para eles quanto nós nos preocupamos com as nossas.
Com nossas ilusões, estamos tornando a vida insuportavelmente difícil para eles, pelo menos tão difícil quanto foi para nós neste ano terrível.
Temos o conhecimento da natureza para dar a essas gerações futuras a oportunidade de lutar para prosperar.
Este tem sido um ano que nos fez não apenas conhecer essas verdades difíceis, mas também senti-las profundamente.
2020, com todos os seus horrores, ainda pode ser a nossa salvação, se conseguir nos tirar do nosso estupor de ilusões.