Análise: Por que a Ford escolheu a Argentina em vez do Brasil

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A notícia da saída da Ford do Brasil, que deve custar mais de 5 mil empregos, pegou boa parte do mercado de surpresa. Mas, ao analisar os fatos ocorridos nos últimos anos, dava para perceber que a montadora estava perto de reformular toda a sua atuação no Brasil. Falta de anúncios de investimentos por aqui, fechamento da fábrica em São Bernardo do Campo (SP) e a queda na venda de veículos nos últimos anos (mesmo com a alta das vendas do setor como um todo) eram alguns dos sinais.

Poderia ser algo global, afinal o setor automotivo não anda bem das pernas nos últimos anos e a companhia já havia anunciado a paralisação da produção de diversos carros de passeio ao redor do mundo, incluindo nos Estados Unidos.

Mas a Argentina parecia diferente para a Ford. Mesmo com um país em uma crise tão ruim (ou até pior) do que a do Brasil, a montadora americana anunciou o investimento de R$ 3 bilhões por lá no mês passado. Cerca de 70% desse valor será investido na fábrica de General Pacheco, em Buenos Aires.

Na Argentina, a Ford investe em carros grandes, como picapes e SUVs. A Ranger vendida aqui no Brasil, por exemplo, vem de lá. O Brasil, historicamente, concentrou a produção dos carros de passeio, graças ao seu mercado interno robusto. Porém, os carros populares, aparentemente, não eram mais tão lucrativos para a Ford.

“Nosso dedicado time da América do Sul fez progressos significativos na transformação das nossas operações, incluindo a descontinuidade de produtos não lucrativos e a saída do segmento de caminhões”, disse Lyle Watters, presidente da Ford na América do Sul, em nota.

“Esses esforços melhoraram os resultados nos últimos quatro trimestres, entretanto a continuidade do ambiente econômico desfavorável e a pressão adicional causada pela pandemia deixaram claro que era necessário muito mais para criar um futuro sustentável e lucrativo”, completou.

Então, já que a Argentina era um país com expertise para a fabricação desses modelos de maior valor agregado, foi mais fácil ficar por lá. A questão, agora, não é tanto escala para a Ford, como disse a montadora em nota. O foco da empresa, agora, é a “oferta de veículos conectados de alto valor agregado e qualidade.” Há mais de uma década esse é o perfil da produção argentina. 

Segundo o consultor da ADK, Paulo Garbossa, especializado no setor, o Brasil deveria ter focado em picapes e SUVs, que são os queridinhos dos consumidores há algum tempo, e, também, em resolver a bagunça tributária. De repente, assim, a Ford teria ficado por aqui. Mas o fato de os custos fixos no país vizinho serem mais baixos, como os gastos com a mão de obra, também podem ter pesado na decisão. 

Um estudo da Associação Nacional das Fabricantes de Veículos Automotores (Anfavea) mostra que um carro no Brasil paga entre 48,2% e 54,8% de taxa, levando todos os impostos como ICMS, ISS, PIS e Cofins (e o efeito cascata embutido nele).

“Entendemos que a decisão está alinhada a uma estratégia de negócios da montadora. Mas, o ambiente de negócios é um dos fatores que pesam no momento de decisão sobre onde permanecer e onde fechar”, disse Carlos Abijaodi, diretor de Desenvolvimento Industrial da CNI.

Não por acaso, após o anúncio da montadora, o presidente da Câmara dos Deputados, Rodrigo Maia (DEM-RJ), postou em sua conta do Twitter que a decisão é uma demonstração da falta de credibilidade do governo brasileiro, de regras claras, de segurança jurídica e de um sistema tributário racional.

“O sistema que temos se tornou um manicômio nos últimos anos, que tem impacto direto na produtividade das empresas”, escreveu.

Queda nas vendas

Mas a montadora americana também não pode falar que a crise brasileira e a pandemia foram os únicos responsáveis pelo momento ruim dela no país. Ao contrário. A empresa, nos últimos anos, vinha perdendo espaço tanto em volume quanto em participação de mercado.

Para se ter uma ideia, em 2015, a Ford era a quarta montadora no Brasil e com uma fatia de 10,24% do mercado. No ano passado, foi a quinta com 7,14% de participação. Em 2019, foi pior ainda: ocupou a sétima posição.

E apesar da retomada do setor automotivo a partir de 2017, a empresa não conseguiu subir na mesma velocidade. Em 2019, a Ford viu as suas vendas de veículos caírem mais de 10% em comparação aos resultados do ano anterior. Nesse ano, as vendas subiram quase 9%, segundo a Fenabrave. Nessa toada, a sul-coreana Hyundai abocanhou a quarta posição.

Um sinal de que havia algo estranho no ar também pode ser visto no calendário de lançamentos da empresa, ocorrido em dezembro.  Em coletiva de imprensa, Watters confirmou o lançamento de quatro novos modelos para a região, todos produzidos fora do país.

O utilitário Transit, uma nova versão da picape Ranger, a edição limitada do esportivo Mustang, o Mach 1 e o novo SUV global da marca, o Bronco.

Nenhum sinal dos outros veículos.

Em 2019, para completar, a empresa anunciou o fechamento de sua fábrica em São Bernardo do Campo (SP), onde montava caminhões e o Fiesta, que foi um dos seus modelos de maior sucesso no Brasil. 

Hermanos parceiros

Mas se engana quem pensa que não verá mais carros da Ford no Brasil. Só que agora serão carros mais robustos e, claro, importados.

O Brasil e a Argentina assinaram, em 2019, um acordo comercial que prevê o livre comércio de bens automotivos até julho de 2029.

Antes, os acordos anteriores entre Brasil e Argentina para o setor automotivo vinham sendo renovados periodicamente. 

Outras empresas podem seguir esse caminho da Ford? Para Antonio Jorge Martins, economista e professor da Fundação Getúlio Vargas (FGV), não. O caso da Ford, segundo ele, é muito específico.

“A estratégia da Ford é focar em sua produção de carros com tecnologia mais sofisticada. Outras fábricas e montadoras têm foco outros nichos”, diz Martins. “E em níveis de produção, há plena capacidade da indústria brasileira de ocupar esse espaço vazio pela Ford.”

A General Motors, provavelmente, vai querer um pedaço dessa fatia que a Ford vai deixar para trás. Na semana passada, ela anunciou que irá retomar em 2021 o planejamento que previa investimentos de R$ 10 bilhões em suas fábricas no país pelos próximos cinco anos, destinados à inovação e também à produção de modelos ainda inéditos no Brasil.

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