Um grupo de pesquisadores brasileiros descobriu uma nova variante genética que pode estar ligada a uma predisposição em mulheres ao aumento do índice de massa corporal (IMC), uma medida internacional usada como parâmetro para o cálculo do peso ideal.
A variante, batizada de rs114066381, é de origem africana e está presente em ambos os sexos, mas só atua em mulheres adultas miscigenadas. A incidência na população é de 1%, com um percentual ligeiramente maior em regiões com maior ancestralidade africana, como a Nordeste.
O trabalho, que começou em 2017, liderado por pesquisadores da Universidade Federal de Minas Gerais (UFMG), foi publicado na revista científica International Journal of Obesity, uma das mais prestigiosas na área de obesidade. Foi realizado em conjunto por cientistas de 22 instituições, 11 do Brasil e sete dos Estados Unidos, uma do Peru, uma da África do Sul, uma de Gana e uma da Austrália.
De acordo com o líder do grupo brasileiro, Eduardo Tarazona Santos, do Departamento de Genética, Ecologia e Evolução, do Instituto de Ciências Biológicas da UFMG, o objetivo do trabalho era encontrar variantes que favorecessem a obesidade, em particular de origem africana ou indígena, que são as menos estudadas em todo o mundo.
Entre as mutações relacionadas à obesidade, a maior parte das conhecidas hoje no mundo foi encontrada em populações de origem europeia. São cerca de 230, que atuam especificamente em mulheres, e 134 em homens.
“O efeito dessas variantes — nós podemos ter 0, 1 ou 2 cópias — no IMC em indivíduos do sexo feminino pode variar de 0,009 a 0,48 Kg/m² (em unidades desse índice), dependendo de qual se analisa, enquanto nos do masculino atinge no máximo a 0,095 kg/m²”, informa Tarazona.
O IMC é calculado dividindo-se o peso em quilogramas pelo quadrado da estatura em metros. De acordo com a Organização Mundial de Saúde (OMS), as pessoas com um índice entre 25 e 29,99 kg/m² são consideradas com sobrepeso, entre 30 e 39,99, obesas, e acima de 40, com obesidade mórbida ou grave.
“A variante que encontramos, chamada rs114066381, predispõe para um aumento do IMC que pode ir de 2,32 a 5,65 kg/m², com uma média de 3,9 kg/m²”, diz a bióloga Marília de Oliveira Scliar, que também participou do trabalho, quando fazia doutorado em genética na UFMG.
“Curiosamente, isso é observado apenas em adultas miscigenadas. Para os homens, ela não tem nenhum efeito.”
Para encontrá-la, os pesquisadores usaram os dados do projeto EPIGEN-Brasil, financiado pelo Ministério da Saúde, que, entre 2009 e 2013, estudou a diversidade genômica de 6.487 indivíduos, analisando cerca 2,3 milhões de variantes genéticas, espalhadas ao longo de todo o genoma humano. Também foram estudados dados de IMC, renda, sexo, idade e ancestralidade europeia, africana e nativo-americana de cada um deles.
Do total de pessoas estudadas pelo EPIGEN, o grupo liderado por Tarazona pesquisou 6.192 (3.280 mulheres e 2.912 homens), dos quais 1.222 (664 e 558), de Salvador (BA); 1.342 (821 e 521), de Bambuí (MG) e 3.628 (1.795 e 1.833), de Pelotas (RS).
“O primeiro grupo era composto de indivíduos que tinham entre 4 e 11 anos, em 2005, quando o IMC deles foi medido; o segundo de maiores de 60 anos, em 1997, e o terceiro de nascidos em 1982”, conta Tarazona.
“Foi justamente neste último grupo que encontramos a variante primeiro.” Também foi neste contingente no qual ela mostrou ter o maior efeito — os 5,65 kg/m².
De acordo com o pesquisador, apesar de a população de Pelotas ter 76% de ancestralidade europeia e apenas 16% africana e 8% indígena, não foi algo assim tão inesperado encontrar a mutação ligada à ancestralidade africana primeiro nela.
“Isso ocorreu porque a amostra é a maior que estudamos e, por isso, havia maior probabilidade estatística de descobrir coisas novas do que em grupos menores”, explica.
Mesmo assim, Tarazona considera “interessante” que uma variante africana tenha sido encontrada em uma das populações mais europeias do Brasil. Para ele, a descoberta mostra que os brasileiros miscigenados, mesmo com a maioria de indivíduos brancos, podem possibilitar achados sobre mutações de origem africana.
“Isso faz da miscigenação um fenômeno relevante do ponto de vista da pesquisa biomédica”, diz.
Segundo Marília, a descoberta em Pelotas mostra que grande parte da população brasileira, mesmo aquela que se declara branca, é miscigenada, ou seja, carrega em seu DNA variantes de origem africana, que podem estar associadas a diferentes doenças ou características.
“Por isso, nosso achado demonstra a importância e a necessidade de incluir populações não europeias em estudos genômicos”, diz.
Depois da descoberta na cidade gaúcha, os pesquisadores confirmaram o resultado analisando mais especificamente as mulheres idosas de Bambuí e São Paulo.
“Não vimos associação nas de Salvador, mas elas eram crianças” diz Tarazona. “Em seguida, fomos atrás de replicar esse resultado em outras populações do mundo. Ele foi confirmado parcialmente em mulheres de Porto Rico, mas não nas da África ocidental e da África do Sul.”
Para os cientistas, o fato de a nova variante que descobriram atuar apenas em mulheres adultas miscigenadas merece atenção do ponto de vista biológico e evolutivo. Isso porque as mulheres possuem mutações que têm um efeito maior no acúmulo de gordura do que os homens.
“É algo pode ter a ver com nossa evolução”, diz Tarazona. “Tendo que engravidar e amamentar os filhos, elas podem ter precisado, em algum momento do passado, acumular mais gordura como reserva energética.”
Isso teria sido favorecido pela seleção natural. “Essas variantes, como a que encontramos, são chamadas de thrifty genotypes, em inglês, ou genótipos poupadores”, explica.
“Ou seja, em alguma época, quando as fontes de energia eram escassas, podem ter sido úteis, mas hoje são prejudiciais. A obesidade está associada a doenças cardiovasculares e alguns tipos de câncer, além de aumentar o risco para formas graves de covid-19.”
Apesar de a maior parte da população brasileira ser miscigenada, a descoberta da nova variante não deve ser motivo de preocupação — a não ser para aquelas mulheres que a possuem, que são poucas. Ela está presente em apenas 1% da população em geral, podendo chega a 3% no Nordeste, região com maior ancestralidade africana.
No caso de obesidade mórbida, no entanto, ela está presente em 10% das que apresentam o problema. “Outra forma de ver isso é que, enquanto na população geral de mulheres (com ou sem a variante) 1,5% são obesas mórbidas, entre as que possuem a mutação esse índice é de 15%”, diz Tarazona. “Ou seja, a presença da variante aumenta 10 vezes a chance de se ter obesidade mórbida.”
A baixa frequência dela na população não retira a importância da sua descoberta.
“É muito relevante encontrar uma nova mutação com grande efeito sobre a obesidade”, diz Marília.
“Embora, por enquanto, não haja uma aplicação prática do nosso achado, o grande impacto dela no IMC nos instiga a fazer estudos funcionais daqui para frente. O primeiro passo é determinar como ela atua no organismo para aumentar a obesidade.”