Jair Bolsonaro se notabilizou por operar numa política de confronto com seus críticos e adversários. A escalada da pandemia e o evidente fracasso desse expediente para conter os efeitos do vírus obrigaram o presidente a acrescentar outro elemento a essa estratégia. Nas últimas semanas, o governo se viu forçado a adotar também um plano de defesa.
Acuado pela disparada das mortes, pelas perspectivas melancólicas da economia e pelo aquecimento do ambiente político, Bolsonaro tentou fechar os flancos mais expostos do governo. A principal jogada foi a conversão do presidente e seus aliados em apoiadores fervorosos da vacinação, após meses de ataques e questionamentos aos imunizantes.
A guinada chegou a ser descrita como sinal de que o presidente mudaria de estilo para conter novos desgastes políticos. Mas Bolsonaro, como esperado, não abandonou a postura conflituosa: manteve ataques aos governadores, repisou suas críticas às medidas de distanciamento e subiu decibéis ao lançar ameaças de desordem social.
Bolsonaro usa duas ferramentas em paralelo. Na quarta (10), ele fez uma rara aparição com uma máscara de proteção e lançou uma defesa da imunização. No dia seguinte, surgiu exaltado em sua transmissão semanal nas redes sociais, insinuou que máscaras são ineficazes e disse que as restrições dos governos locais levam a “brigas, morte e caos”.
O movimento se desenhou em semanas recentes e se intensificou depois que o ex-presidente Lula recuperou os direitos políticos, testando um figurino eleitoral como antípoda de Bolsonaro no combate à pandemia.
O presidente andou no sentido inverso: embora políticos de vários partidos tenham editado decretos de distanciamento, Bolsonaro tentou vincular a políticos de esquerda essas medidas e suas consequências econômicas. “Se está aqui o [Fernando] Haddad ou o Ciro [Gomes], o Brasil estaria fechado igualzinho à Argentina”, disse, na quinta (11).
Ainda que o presidente tente remodelar o discurso oficial sobre a vacina, o governo certamente sabe que uma acrobacia política tão espalhafatosa tem efeitos limitados –principalmente se for considerado o fato de que o Ministério da Saúde não consegue cumprir o cronograma de imunização da população.
Por isso, Bolsonaro insiste em métodos já conhecidos e explora seus instintos de radicalização como um mecanismo de proteção. O plano é atiçar tanto sua base de apoiadores fiéis quanto aqueles que apontam suas falhas, com o objetivo de garantir que eles deem sustentação ao governo num momento difícil.
“Quanto mais atiram em mim de forma covarde […], mais se está enfraquecendo quem pode resolver a situação”, queixou-se o presidente, em sua transmissão ao vivo na última quinta. “Vou ficar sozinho nessa briga? O meu exército […] é o povo. Desunindo, agredindo, fica difícil. Vocês sabem quem está errando no Brasil, e errando muito.”
Poucas imagens descrevem tão bem a fusão do discurso pró-imunização com os acenos às bases governistas mais fervorosas quanto uma ilustração divulgada nas redes sociais pelo deputado Eduardo Bolsonaro (PSL-SP). Nela, o personagem Zé Gotinha empunha uma seringa como um fuzil, ao lado da frase: “Nossa arma é a vacina”.
O comportamento do presidente reflete um momento peculiar de tensão para o governo. Ainda que a crise aberta pela demissão de Sergio Moro tenha criado problemas judiciais para Bolsonaro e feito desmoronar parte de sua base de apoio, as pressões que ele enfrenta agora surgem em diversas frentes e encontram baixa capacidade de reação.
O problema central é o avanço dramático das mortes por Covid-19 e a vacilação continuada do governo na resposta à pandemia. O avanço da imunização pelo mundo e as falhas do governo brasileiro nessa área ampliaram a insatisfação da população e contaminaram empresários ansiosos pela retomada da economia.
A resposta se deu em etapas. O governo correu atrás de contratos que havia recusado meses antes e lançou um esforço de propaganda que ficou conhecido como Plano Vacina. O objetivo principal é convencer o país de que o presidente sempre trabalhou pela imunização acelerada e nunca desdenhou desses esforços.
Os fatos desmentem o discurso oficial. Em 26 de outubro, Bolsonaro disse a apoiadores na portaria do Palácio da Alvorada que não via motivos para “correr em cima” da vacina contra a Covid-19. “Não é mais barato ou mais fácil investir na cura do que na vacina?”, acrescentou, em referência a remédios sem eficácia comprovada contra a doença.
Sem mencionar os questionamentos feitos pelo presidente, o governo também passou a listar acordos firmados desde junho de 2020 para viabilizar a compra de vacinas. A tática dificilmente conseguirá amortecer as críticas pela lentidão na campanha de imunização, uma vez que o Ministério da Saúde recusou a assinatura de três contratos com a Pfizer.
Para conter os prejuízos políticos, Bolsonaro busca reescrever a história da pandemia com mentiras sobre sua própria conduta. Na quinta-feira, ele voltou a dizer que nunca havia chamado a Covid-19 de gripezinha.
Foram duas vezes: : em 20 de março de 2020 (“Depois da facada, não vai ser uma gripezinha que vai me derrubar”) e em 24 de março (“Caso fosse contaminado pelo vírus, não precisaria me preocupar. Nada sentiria ou seria, quando muito, acometido de uma gripezinha”). Ele também previu que o coronavírus mataria menos de 800 brasileiros.
Ao mesmo tempo, Bolsonaro dobra a aposta no embate com outras autoridades. Na quinta, ele voltou a atacar medidas de fechamento do comércio (“um crime”). Depois, leu a que cometeu suicídio por dificuldades financeiras e atribuiu a governadores a responsabilidade por mortes semelhantes (“me acusam de genocida, essas pessoas”).
Essa ofensiva se torna mais aguda à medida que as expectativas de recuperação da economia ficam mais fracas. Bolsonaro reconhece que o esfriamento do mercado de trabalho e a redução da renda costumam cair no colo de presidentes, não de governadores. Por isso, desde o início da pandemia, ele briga para rachar essa conta.
Existe ainda um componente adicional, com o retorno de Lula à arena política. O Palácio do Planalto entende que as dificuldades da economia podem estimular na população mais pobre uma memória dos governos do petista –especialmente com a rápida perda de apoio que Bolsonaro teve nesses segmentos com a interrupção do auxílio emergencial.