No início da pandemia, as imagens de médicos utilizando escafandro e cilindros de oxigênio nos deixaram com a impressão que a prevenção da covid-19 era muito complicada.
Mas a experiência mostrou que atitudes simples, como manter o distanciamento físico, usar máscaras e evitar aglomerações, são as medidas que mais ajudam a evitar uma infecção pelo coronavírus responsável pela pandemia atual.
Apesar de relativamente simples, essas estratégias são ignoradas por parte da população — e não são reforçadas por nenhuma campanha de comunicação feita pelo Governo Federal.
Essas e outras observações foram feitas pelo médico Paulo Chapchap, diretor geral do Hospital Sírio Libanês, em São Paulo, numa entrevista exclusiva à BBC News Brasil.
O especialista ainda contou que todas as previsões mais pessimistas feitas pelo comitê de crise do hospital estão se concretizando e as últimas semanas foram as piores desde que a pandemia começou, há mais de um ano.
Chapchap também chama a atenção para o risco que o fechamento prolongado das escolas traz às futuras gerações. “Há um enorme prejuízo às crianças. Esse dano é permanente e coletivo”, aponta.
Confira os principais trechos a seguir.
BBC News Brasil – Como o senhor classifica a atual situação da pandemia de covid-19 no hospital e, de forma mais ampla, em todo o Brasil?
Paulo Chapchap – Esse é o momento de maior demanda de pacientes com covid-19 no nosso hospital. De todas as semanas desde que começou a pandemia no Brasil, essas são as piores que temos até agora. Dia após dia, temos batido nosso recorde anterior de indivíduos internados aqui no Hospital Sírio-Libanês.
BBC News Brasil – Na experiência do senhor, o momento atual se aproxima a algum outro período de crise que vocês viveram por aí?
Chapchap – Não, essa é a pior crise sanitária que o país viveu em toda a sua história. Não há dúvida, pelo menos se considerarmos a história moderna. É claro que tivemos problemas anteriores, como a gripe espanhola em 1918. Mas do que nós presenciamos, não há dúvidas de que essa é a maior crise que já vivemos.
E ela não é um desafio apenas para o sistema de saúde, mas para a sociedade brasileira como um todo. Isso porque há implicações enormes em todas as áreas da vida e da economia.
Nós observamos, por exemplo, um efeito brutal na socialização das crianças e no comprometimento cognitivo delas pela falta do estímulo escolar. A crise é tão disseminada no país que afeta todas as áreas de nossa sociedade de uma forma muito grave. Nós precisamos então encurtá-la o máximo que conseguirmos para voltar à normalidade assim que possível.
BBC News Brasil – Nas últimas semanas, acompanhamos as notícias de diversas cidades do país com lotação total de seus leitos hospitalares. Como lidar com esse cenário de crise e escassez do ponto de vista da gestão hospitalar?
Chapchap – Esse é um desafio permanente. Porque além de lidar com a covid-19 e com os pacientes potencialmente contaminantes, devemos pensar nos próprios colaboradores do hospital, que precisam zelar pela própria saúde e o bem-estar de suas famílias. Em paralelo a todos os atendimentos relacionados à pandemia, as pessoas continuam a sofrer com problemas cardíacos, neurológicos, câncer, outras infecções…
Tudo isso confere ao hospital um desafio de atender a demanda e segmentar as necessidades. Nós criamos fluxos separados das pessoas com suspeitas de covid-19 e outros indivíduos que precisam vir até aqui. Essa adaptação precisa ser rápida, isso é fundamental.
Mas eu preciso te dizer uma coisa: aqui no hospital nós construímos projeções do que vem pela frente. E nós sempre adotamos o cenário mais pessimista para nos prepararmos. E preciso te dizer que nós temos acertado: as nossas previsões mais pessimistas têm se materializado.
Quando vieram as festas de final de ano, nos preparamos para uma maior carga de serviço, uma demanda que realmente aconteceu no mês de janeiro. Quando aconteceram os feriados de carnaval, previmos uma piora do quadro e, de novo, isso se materializou, levando a essa enorme sobrecarga de serviço que temos agora.
BBC News Brasil – O Hospital Sírio-Libanês é reconhecido como uma das instituições de ponta, com uma enorme estrutura. Vocês imaginavam que chegariam a esse ponto crítico?
Chapchap – Nós temos reuniões diárias com o nosso centro de enfrentamento da crise. No início da pandemia, fazíamos esse encontro até duas vezes ao dia. Mas, quando houve uma diminuição de casos em setembro e outubro de 2020, começamos a nos reunir duas vezes por semana, porque víamos um arrefecimento da pandemia.
Quando percebemos que a crise se aprofundava em outras partes do Brasil e a chegada de pacientes com sintomas de síndrome gripal no pronto-atendimento começaram a aumentar, já conseguíamos projetar que o número de internações iria a aumentar em seguida, assim como os casos graves, a necessidade de unidades de terapia intensiva e as mortes.
Ao observar tudo isso, nós conseguimos prever todas as ondas com antecedência. Nós monitoramos isso em função da média de utilização de nossos serviços nos períodos anteriores e projetamos as necessidades para o futuro. Houve uma época em que a gente já disparava os pedidos da reposição de nossos estoques de oxigênio quando eles chegavam a 40%. Depois, progredimos para 70%. Atualmente, não deixamos ficar abaixo de 90% e temos entregas diárias dos suprimentos.
Mas qual a razão disso? Nós aumentamos muito o número de leitos para pacientes críticos. Abrimos mais de 100 desses leitos. Tínhamos 470 e hoje estamos com 580 vagas. Além disso, convertemos leitos de baixa complexidade para terapia intensiva. Multiplicamos por várias vezes nossa capacidade de atendimento de pacientes críticos.
BBC News Brasil – Nos últimos meses, acompanhamos uma série de eventos que incentivaram a aglomeração de pessoas, como as eleições, as festas de final de ano e o carnaval. Em paralelo, uma nova variante do coronavírus foi descoberta em Manaus no início do ano. Esses dois fatores explicam o cenário da pandemia que vivemos agora?
Chapchap – Sim, e elas conferem um desafio adicional. Mesmo fora desses eventos específicos que você citou, o comportamento das pessoas tem sido bastante inadequado frente ao conhecimento que nós já temos das medidas de proteção. Hoje nós sabemos que os cuidados preventivos são mais simples do que imaginávamos lá no começo. Nós víamos aquelas imagens da China, com as pessoas pulverizando as casas, aplicando sprays antissépticos em todos os lugares, profissionais da saúde usando escafandro, respirando por tanques de oxigênio…
Hoje sabemos que nada disso é preciso. Se você usar máscara e manter um distanciamento das pessoas, não vai contrair a doença. As medidas são muito simples. Sabendo que o sacrifício poderia ser menor, acreditamos que isso seria suficiente para que as pessoas evitassem as situações de alto risco, o que nos permitiria controlar a pandemia.
Mas nós nos surpreendemos negativamente ao vermos que as pessoas não adotam essas simples medidas de contenção. Há uma certa decepção dos profissionais da saúde com o comportamento da população na pandemia. Vemos indivíduos fazendo festas com aglomerações, que tiram a máscara para comer, beber, cantar… E tudo isso em ambientes fechados. A chance de cruzar com alguém infectado é muito grande.
Nós sabemos como conter a disseminação do vírus e ainda há tempo de fazer isso. Se todos cooperarem e fizerem o certo, em duas ou três semanas começaremos a ver uma curva descendente de casos e óbitos, o que vai nos alegrar muito.
BBC News Brasil – Muitos governadores e prefeitos têm anunciado o fechamento de atividades comerciais e a abertura de novos leitos. Essas medidas fazem sentido agora? O que mais poderia ser feito?
Chapchap – Essas medidas têm sentido sim. Muitas vezes vejo gente perguntar: por que não abrimos novos hospitais de campanha agora, se a crise atual é pior do que a primeira? Porque nos últimos meses nós aparelhamos muitos dos hospitais já existentes. Nós compramos milhares de respiradores e ativamos novos leitos de terapia intensiva e enfermaria. Com isso, agora estamos mais preparados do que na primeira crise. Por isso que aqui em São Paulo estamos resistindo até agora sem entrar em colapso.
Mas se essa onda continuar aumentando como está, precisamos sim de leitos adicionais em hospitais de campanha. Por isso, fazemos um apelo à população para que ela se contenha e use sempre as suas máscaras.
Vejo que vários governadores anunciaram medidas mais restritivas. Porque quando você chega numa crise dessas, precisamos ser mais rigorosos. Os governos têm anunciado muito propriamente a diminuição da circulação de pessoas em determinado horário e o fechamento de todas as situações em que pode acontecer uma infecção. E, mesmo com festas, restaurantes e bares fechados, há gente que teima em fazer festas clandestinas, com pouca consciência da gravidade do momento que estamos passando.
BBC News Brasil – Como o senhor destacou, essas medidas são necessárias no curto prazo. Mas quais são as perspectivas de médio e longo prazo? O que precisamos fazer para que a pandemia acabe?
Chapchap – O mais importante de tudo agora é vacinar a população. Nos países com uma cobertura vacinal significativa, como os Estados Unidos, já há diminuição na curva de mortes. É claro que isso acontece não só por causa das vacinas, mas também porque o atual governo americano teve a consciência de recomendar de forma mais consistente para que a população fizesse distanciamento, uso de máscaras e todo o comportamento adequado.
Mas a vacina também traz um impacto porque você começa protegendo a população mais vulnerável, com o objetivo de diminuir as mortes. Isso traz um impacto enorme.
Se você me perguntar o que o Brasil tem que fazer, o momento é focar na compra de vacinas e abrir canais para o fornecimento de doses além daquelas que já estão garantidas. E ter certeza de que elas serão entregues no prazo que foi prometido.
A vacinação é o meio mais eficaz para lidarmos com a pandemia no médio e no longo prazo. Enquanto isso não acontece, é aquilo que eu disse e reforço: precisamos do comportamento adequado das pessoas por meio da criação de barreiras contra o vírus, como o distanciamento e a proteção facial.
BBC News Brasil – O momento é muito complicado e delicado, mas o senhor acredita que dê para tirar algum aprendizado de tudo que estamos vivendo?
Chapchap – Um ensinamento importante é ter uma cartilha para o enfrentamento de uma crise como essa, que acomete o país inteiro de uma só vez. Antes, víamos o agravamento em algumas cidades ou estados e era possível migrar capacidades e ajudar. Agora não.
É importante observar que nós temos uma estrutura robusta para enfrentar uma pandemia, que é o Sistema Único de Saúde, o SUS. Ele dá acesso a todos, independentemente do poder aquisitivo, da classe social ou da localidade. Esse princípio é muito importante, ainda mais quando notamos que uma parte da falência dos Estados Unidos no momento pior da crise por lá aconteceu porque muitas pessoas não procuraram atendimento médico porque não tinham o direito de serem atendidas. Elas acabaram retardando o tratamento numa tentativa de preservar o patrimônio e não pagar as contas do hospital depois.
Mas qual o aprendizado que tiramos da pandemia? Nós deveríamos ter centralizado os dados, as decisões e a comunicação. Deveríamos ter montado um gabinete de crise no Governo Federal, reunindo todas as competências necessárias para tomar a decisão. Deveríamos ter pessoas que tivessem experiência e competência, capazes de reunir os dados enviados por estados e municípios sobre as necessidades de leitos, equipamentos de proteção, remédios…
Ao conhecer esse mapa de acometimento, poderiam ser feitos os isolamentos adequados para que não houvesse contaminação das localidades vizinhas. Para suprir as necessidades, precisaríamos de força nacional de saúde, inclusive. E poderíamos restringir a movimentação das pessoas a partir desses locais mais atingidos, de uma forma que não fosse desumana, claro.
Esse método de enfrentamento de uma crise, que envolve decisões centralizadas, competentes e alimentadas por dados, foi uma coisa que nós falhamos. Poderíamos ter feito diferente e a gente não fez.
Talvez, para uma próxima pandemia, esses protocolos de enfrentamento e processos de decisão precisam estar desenhados para que não tenhamos que viver tudo novamente.
BBC News Brasil – Nesse momento de agravamento da pandemia, quais cuidados as pessoas precisam tomar para se proteger?
Chapchap – São medidas que só dependem de nós mesmos. Primeiro, utilização de máscaras em todos os ambientes. A única exceção é dentro de casa, com as pessoas que moram com você. Isso se elas não estiverem com sintomas de gripe, aí até mesmo nessa situação é preciso usar máscara. Esse equipamento também deve estar no rosto em todas as situações em que você encontre pessoas que não são próximas do seu convívio.
A segunda medida é evitar aglomerações em ambientes coletivos. Se você precisar ir à farmácia, ao supermercado, é máscara o tempo todo e sem se aproximar dos outros.
Precisamos falar também das escolas. Num momento de crise, eu até entendo a necessidade de fechá-las. Mas a primeira coisa que nós vamos abrir assim que tivermos um arrefecimento precisa ser o setor de ensino. Há um enorme prejuízo às crianças. Esse dano é permanente e coletivo, porque elas precisam ser estimuladas cognitivamente. E hoje sabemos que esses ambientes podem funcionar com relativa segurança, desde que respeitados protocolos rígidos.
Outro ponto: tomar a vacina, tão logo ela esteja disponível para você. Qual vacina devo tomar? A que estiver disponível. Nós sabemos que todas protegem contra a doença grave e a morte, além de diminuir o potencial de contaminação para outras pessoas.
Portanto, é hora de usar máscara, manter distanciamento físico, evitar ambientes fechados ou aglomerações e tomar a vacina assim que ela estiver disponível. É isso. Não é nada difícil. E precisamos respeitar essas medidas não apenas pela nossa própria saúde, mas pela responsabilidade coletiva que temos com o resto da sociedade.