A BBC News Brasil encontrou ao menos quatro empresas que estão fazendo isso em São Paulo, no Paraná e em Santa Catarina. Em uma delas, funcionários ouviram na semana passada, presencialmente, palestra de uma médica sobre o chamado “tratamento precoce”.
“A decisão foi da diretoria porque a gente acredita no tratamento e faz o tratamento. Queremos fazer pelos nossos funcionários a mesma coisa que a gente faz para a nossa família”, diz Giselle Rêgo, diretora industrial da Tecnocuba, que produz peças de aço inoxidável em São Paulo.
A empresa ofereceu a possibilidade de “tratamento precoce” a todos os 105 funcionários.
O suposto tratamento precoce, ou kit covid, costuma se referir a uma combinação que inclui medicamentos ineficazes ou ainda em estudos contra a covid-19, como hidroxicloroquina, ivermectina, azitromicina, vitamina D, vitamina C, entre outros, que podem trazer efeitos colaterais.
Em outras palavras: cientistas e chefes de hospitais apontam que eles não ajudam no tratamento contra a covid-19 e podem causar danos à saúde (no fim desta reportagem, a BBC News Brasil descreve as conclusões de cientistas e entidades internacionais condenando este uso dos medicamentos).
Apesar disso, mais de um ano depois do início da pandemia no Brasil e com mais 314 mil mortos pela doença, o próprio presidente da República, Jair Bolsonaro (sem partido), recomenda o “tratamento precoce”, ao lado de gestores de alguns municípios brasileiros e grupos de médicos no Brasil.
Nas últimas 24 horas, o Brasil teve novo recorde de mortes pela doença – foram 3.668. O mês de março de 2021 já registra quase o dobro das mortes de julho de 2020, até então considerado o mais letal da pandemia.
Recentemente, reportagem do site G1 também mostrou que a Prevent Senior, uma das maiores operadoras de saúde do país, segue distribuindo o “kit covid” para seus clientes, antes mesmo de uma consulta e até para quem está assintomático.
Segundo chefes de Unidades de Terapia Intensiva (UTIs) de hospitais de referência no Brasil, isso tem contribuído de diferentes maneiras para aumentar as mortes no país, como mostrou a BBC News Brasil.
Uma reportagem do jornal O Estado de S. Paulo revelou como já há pacientes que morreram ou foram para a fila de transplante de fígado por causa do uso do “kit covid”.
Os números da pandemia em todo mundo mostram que a maior parte das pessoas que contrai covid-19 se recupera. Por isso, segundo especialistas, remédios apresentados como “cura” acabam “roubando o crédito”do que foi apenas uma melhora natural.
Para o advogado trabalhista Sergio Batalha, empresas distribuírem o “kit covid” aos funcionários ou bancarem o chamado “tratamento precoce” é imprudente e ilegal, uma vez que o empregador não pode fazer nada que coloque a saúde do empregado em risco.
“Distribuindo o kit, o empregador pode causar efeitos colaterais na saúde do trabalhador, dar a falsa sensação de segurança para ele, fazendo com que não se cuide adequadamente e contraia o vírus, e fazer com que ele demore a buscar ajuda em um hospital caso contraia a doença”, afirma.
“Na prática, está pondo em risco a saúde de seu empregado, além de se associar a uma prática que beira o curandeirismo.”
‘Deus está muito feliz no céu’
Uma foto no perfil da médica Eliane Panini no Instagram mostra o público de uma “aula” ministrada por ela: um grupo de quase cem funcionários, todos de máscara, sentados em cadeiras dispostas uma ao lado da outra.
A empresa, no polo industrial de Arujá, na grande São Paulo, é a Tecnocuba, que em seu site diz ser “uma das empresas líderes na América Latina na produção de cubas, pias, tanques de lavar roupas, acessórios e peças de aço inoxidável”.
“Falamos sobre vários temas, principalmente a importância da quimioprofilaxia”, escreve a médica. Quimioprofilaxia é o uso de substâncias para impedir o desenvolvimento de uma doença ou infecção – para a qual não existem evidências científicas no caso da covid-19.
Segundo Giselle Rêgo, diretora industrial da empresa, depois da palestra, a empresa vai custear a consulta de todos os funcionários com a médica para receber “orientações” e prescrições para fazer o “tratamento precoce”.
Rêgo não quis dizer o custo das consultas bancadas pela empresa.
Segundo ela, houve “98%” de adesão ao tratamento entre os funcionários. “Cada um tem o livre arbítrio, não foi nada imposto.” Quem aceitou, diz, ela, pensou: “Nossa, já estou protegido”.
“Eles confiam na gente. A empresa sempre pensou nos funcionários.”
De acordo com a diretora industrial, no ano passado, a empresa aderiu ao lockdown, confinamento rígido para evitar a disseminação do vírus. Depois, voltou com 70% da capacidade. Hoje, no entanto, a empresa voltou para a capacidade máxima. No ano passado, diz ela, não houve casos de covid-19 entre os funcionários.
Em 2021, houve seis, de acordo com a diretora.
Questionada sobre as críticas ao “tratamento precoce”, Rêgo diz que quem critica “não está na linha de frente”.
“A doutora que eu acompanho… se isso não é embasamento científico, não sei o que é.”
À BBC News Brasil, a médica Eliane Panini afirmou que não “ter perdido nenhum paciente” – embora isso não seja uma evidência de que o “tratamento precoce” funcione, já que a maioria das pessoas que contrai o coronavírus se recupera naturalmente.
“O mundo deveria estar tomando ivermectina quinzenal como profilático. E os profissionais de saúde como eu, que estão na linha de frente, bombeiros, enfermeiros, deveriam estar tomando hidroxicloroquina semanal”, disse.
Ela afirmou que é uma “iniciativa honrada” a da empresa Tecnocuba em contratá-la para oferecer o tratamento aos funcionários. “Quis para os colaboradores o que querem para eles. Deus está muito feliz no céu.”
Questionada sobre o valor cobrado por suas consultas e o valor cobrado para atender aos funcionários da Tecnocuba, Panini não quis responder. “Saiba que é muito pouco o que eu cobro perto do que eu faço pelo meu paciente. São dez dias seguindo diariamente esse paciente, são dez consultas mais um retorno. São 12 consultas. Não é nada perto de uma vida que a gente salva. É uma bobagem, só não vou falar porque isso não é pergunta que se faça”, afirmou.
Em seu perfil no Instagram, a médica diz que é pós-graduada no Hospital das Clínicas em São Paulo e que sua especialidade é “Alergia e Imunologia Adulto e Infantil”. Anuncia que faz “atendimento online em todo o Brasil”.
‘Disseram que era para tomar’
Em outra empresa, a Zanotti Elásticos, em Santa Catarina, funcionários relataram à BBC News Brasil terem recebido ivermectina como “profilático” para a covid-19. Novamente, não há evidências científicas de que o vermífugo funcione para a doença. A empresa tem sede no município de Jaraguá do Sul, onde produz fitas elásticas. Em seu site, ela informa ter “1.700 colaboradores”.
Funcionários entrevistados pela reportagem sob anonimato disseram ter recebido ivermectina da empresa em duas ocasiões: uma vez no ano passado, quando foram distribuídos seis comprimidos, e uma segunda vez agora, quando distribuíram quatro comprimidos para que fossem ingeridos um por dia durante quatro dias.
Um funcionário diz ter se sentido pressionado a tomar o remédio pelo médico da empresa e um líder da equipe. “Disseram que ‘era para tomar’. Vinha em um pacote sem bula, sem nada. Eu peguei, mas não tomei porque achei estranho. Eles meio que forçaram todo mundo a pegar e tomar”, diz.
Os funcionários receberam um formulário da empresa, com perguntas sobre doenças pré-existentes e informações sobre reações adversas da ivermectina. Ao final, o funcionário deveria assinar uma declaração dizendo ter sido “esclarecido de que o tratamento profilático proposto é experimental por ausência de estudos científicos de alta qualidade”.
“Fui orientado sobre os possíveis riscos. Entendo que não existe garantia absoluta sobre os resultados. Autorizo a empresa Zanotti. S.A. a realizar a profilaxia proposta”, diz o texto.
Procurada, a Zanotti Elásticos disse que não se pronunciaria sobre o assunto.
Outra empresa que distribuiu o medicamento a funcionários é a GTFoods, segundo entrevista do médico de trabalho da empresa, Adler Menezes, à rádio Jovem Pan na semana retrasada. O grupo do setor de alimentos tem sede em Maringá, no Paraná, e, entre suas unidades há frigoríficos e abatedouros.
Na entrevista disponível em vídeo no YouTube, Adler Menezes diz que a empresa foi acometida por um surto e que houve “situações graves”. “Eu estava recebendo mais de 10, 15 atestados por dia” de testes positivos de covid, diz ele.
A partir do dia 27 de julho, segundo Menezes, a empresa passou a distribuir uma dose semanal de ivermectina aos 12 mil funcionários da empresa. A empresa mandou manipular o medicamento para distribuir cápsulas de 18mg aos funcionários (normalmente o medicamento é disponibilizado em doses de 6mg).
Menezes comenta sobre uma suposta eficácia do tratamento, que teria diminuído os casos positivos de coronavírus na empresa – mas diz também que os funcionários com resultados positivos foram isolados e submetidos a uma quarentena, estas recomendações comprovadamente eficazes para conter a disseminação do vírus.
Na entrevista, o médico afirma que foi uma “campanha voluntária”, e que não houve adesão total.
Procurado pela BBC News Brasil, Menezes disse que a empresa o desautorizou a seguir falando sobre o tratamento com a imprensa. “O que a gente faz é uma promoção de saúde e controle parasitário”, afirmou.
A BBC News Brasil entrou em contato com a assessoria de imprensa GTFoods por meio de telefonemas e mensagens por WhatsApp, mas não obteve resposta.
Outro vídeo divulgado nas redes sociais mostra Waldemir Kurten, presidente da empresa de casas pré-fabricadas Casas Kurten, também do Paraná, dizendo que sua empresa adotou “o método preventivo”. “Distribuímos para nossos colaboradores a profilaxia precoce (sic) contra o vírus. Nestes últimos três meses, praticamente zeramos a covid na nossa empresa”, afirma.
Nas imagens, Kurten diz estar fazendo sua parte e estimula outros empresários a tomarem atitudes parecidas. “Senhores empresários, peçam a seu médico que lhes ajudem a fazer o protocolo preventivo da covid. Somente o governo não consegue combater esta pandemia”, diz.
A BBC News Brasil procurou a empresa, mas não obteve resposta até a conclusão desta reportagem.
Autonomia do funcionário
Distribuir medicamentos a funcionários, ainda mais sem eficácia comprovada e com possíveis efeitos adversos, pode ferir a autonomia do trabalhador, segundo especialistas.
“A empresa não é um estabelecimento ou profissional de saúde para fazer essa prescrição”, avalia o professor de Farmacologia da Universidade Federal de Rondonópolis André Bacchi.
Para ele, essa prática gera dois custos: o custo clínico, dos efeitos adversos, leves ou graves, que o medicamento pode causar – e que o funcionário paga com a própria saúde – e o custo comportamental, já que os funcionários podem acabar se preocupando menos com o contágio.
“Isso legitima a empresa fazer com que o funcionário vá trabalhar presencialmente. O funcionário não tem desculpa para ficar em casa quando está tomando um medicamento que ‘protege'”, diz Bacchi. “E isso fere a autonomia que o funcionário tem de querer tomar ou não esse medicamento sabendo que não tem demonstração de eficácia.”
“É muito difícil dizer não”, ainda mais, diz o professor, em um contexto de trabalho, onde há uma relação assimétrica entre o funcionário e o dono da empresa. Além disso, muitos funcionários podem tomar os medicamentos pressionados porque outros funcionários estão tomando. “Pode configurar situações quase coercitivas”, avalia.
Para o advogado trabalhista Sergio Batalha, ao fazer isso, a empresa está criando um passivo trabalhista em potencial. “Ela está assumindo um risco. É notório que há polêmicas e uma série de restrições técnicas em torno desses remédios. Se der algum problema, a empresa pode ser responsabilizada. O funcionário ou sua família podem pedir indenização por danos morais ou materiais. As empresas também estão sujeitas a receber uma ação civil pública no Ministério Público do Trabalho.”
“Empresa não deve oferecer remédio nenhum para empregado. É chocante. A empresa está chamando ações trabalhistas”, diz Batalha.
Evidências científicas
As principais autoridades mundiais de saúde continuam ressaltando que não existe tratamento comprovadamente eficaz contra a covid-19. Eficazes são as medidas para não contrair o vírus: distanciamento físico, uso de máscara e lavagem de mãos.
Além disso, as vacinas contra a covid-19 podem evitar infecções e o desenvolvimento de quadros mais graves da doença.
O suposto “tratamento precoce” foi repudiado por entidades médicas brasileiras. Em nota conjunta, a Sociedade Brasileira de Infectologia (SBI) e a Associação Médica Brasileira (AMB) afirmaram que as melhores evidências científicas demonstram que nenhuma medicação serve para prevenir ou tratar a doença até o momento.
“Até o momento, todos os estudos publicados que avaliaram a eficácia desses medicamentos, juntos ou combinados, não demonstraram qualquer vantagem no seu uso quando comparados ao tratamento com placebo ou tratamento convencional. Além disso, os pacientes ainda ficam expostos aos riscos associados ao uso desses medicamentos. Em alguns casos, o uso combinado desses medicamentos pode aumentar o risco de efeitos adversos por interação medicamentosa, como é o caso, por exemplo, do uso concomitante da hidroxicloroquina e azitromicina que pode potencializar o risco de danos cardiovasculares”, afirmou a entidade.
Já o Conselho Federal de Medicina tem sido criticado por sua “omissão” em relação à disseminação do uso de medicamentos do “tratamento precoce” durante a pandemia no Brasil.
A BBC News Brasil entrou em contato com o órgão, mas não obteve resposta para questionamentos sobre o “tratamento precoce” recomendado por grupos de médicos. Ao jornal Estado de S. Paulo, na semana passada, o presidente do órgão, Mauro Ribeiro, disse que não pretende rever parecer de abril do ano passado autorizando médicos brasileiros a prescreverem a cloroquina contra a covid-19, apesar das evidências robustas de que é ineficaz.
Disse também que o médico tem autonomia para indicar medicações, mas quem faz propaganda do kit como cura milagrosa pode responder a sindicâncias nos conselhos regionais.
Estudos já indicam que a hidroxicloroquina é ineficaz para o tratamento da covid-19, e pode causar efeitos adversos como retinopatias, hipoglicemia grave e toxidade cardíaca. Outros efeitos colaterais possíveis são diarreia, náusea, mudanças de humor e feridas na pele.
Não há evidências de que ivermectina, fármaco usado no tratamento de parasitas como piolho e sarna, ajude no tratamento da covid-19. A Agência Europeia de Medicamentos é contrária ao uso de ivermectina no tratamento da covid-19. Após revisar as publicações sobre o medicamento, a agência considerou que os estudos possuíam limitações, como diferentes regimes de dosagem do medicamento e uso simultâneo de outros medicamentos.
“Portanto, concluímos que as atuais evidências disponíveis são insuficientes para apoiarmos o uso de ivermectina contra a covid-19”, concluiu a agência.
Tampouco aprovam o uso do medicamento contra a covid-19 a Organização Mundial de Saúde (OMS) e a Organização Pan-americana de Saúde (OPAS). A FDA, órgão de vigilância sanitária dos Estados Unidos, também não aprovou a ivermectina para prevenção ou tratamento da covid-19 no país.
A ivermectina entrou em cena depois de uma pesquisa da Universidade Monash, da Austrália. O estudo identificou que uma dose bem acima do recomendável do medicamento eliminou o novo coronavírus em testes de laboratório. Mas a dose usada no trabalho seria, em seres humanos, dez vezes superior ao limite considerado seguro.
E a própria universidade publicou um aviso para que as pessoas não usem ivermectina contra covid-19.