Parecem fenômenos isolados, mas o Oscar de melhor filme que Parasita, de Bong Joon Ho, levou em 2020, o fenômeno viral da série do Netflix Round 6 e a avalanche pop chamada BTS fazem parte de um levante cultural que vai colocando a Coreia do Sul no centro da cultura pop mundial.
À medida que o polo magnético político do mundo vai deixando os Estados Unidos rumo ao Oriente, não é nem a cultura tradicional chinesa nem o furor do pop produzido no Japão que surgem como linguagem disposta a dominar o mundo – e sim a ascensão da cultura coreana.
Há até um termo para designar este novo momento, que de novo não tem nada – o fenômeno cultural Hallyu, que pode ser traduzido como “onda coreana”, teve suas sementes lançadas na última década do século passado.
Mas o ano de 2021 é fundamental nesta virada de chave. A própria palavra “hallyu” foi introduzida no dicionário inglês Oxford este ano, como outros 25 termos.
Palavras como banchan, dongchimi, galbi, kimbap e samgyeopsal referem-se a pratos ou ingredientes da cada vez mais popular culinária coreana.
Mas termos como skinship (contato físico muito próximo entre parentes, familiares ou amigos), trot (um gênero de música pop), oppa (termo que designa o irmão mais velho de uma garota), mukbang (vídeos em que pessoas comem muita comida enquanto conversam com os espectadores) e PC bang (computadores ligados em rede que podem ser alugados para fregueses, como as antigas lan houses no Brasil) mostram que esse domínio vai muito além da cozinha.
O salto político e econômico da Coreia do Sul é um fenômeno muito recente e mostra a ascensão de um dos países que era dos mais pobres do mundo, quando a guerra das Coreias terminou, nos anos 1950, se transformando em um dos principais players globais neste século.
O processo de industrialização da Coreia do Sul avança principalmente nos anos 1990, quando, com investimentos pesados do governo, o país se torna, ao lado de Hong Kong, Cingapura e Taiwan, um dos chamados quatro Tigres Asiáticos, países com economia em desenvolvimento que começaram a mudar a cara do Oriente.
A crise econômica de 1997 abateu esses países, mas o governo coreano pegou empréstimos no Fundo Monetário Internacional (FMI) para reforçar empresas chamadas de “chaebol” – grandes corporações familiares que apostavam em diferentes áreas de produtos e serviços.
Foi nesse período que marcas como Samsung, Hyundai, LG, SK, entre outras, começaram a dominar os mercados locais, aos poucos atingindo países como China, Japão, Hong Kong, Tailândia, Brunei, Indonésia, Filipinas, Malásia, Índia, Paquistão, Sri Lanka, Taiwan e Vietnã.
O papel do filho de camponeses que se tornou o principal agente político do país, Kim Dae-jung, que presidiu a Coreia do Sul entre 1998 e 2003 (chegando inclusive a ganhar o prêmio Nobel da Paz do ano 2000), foi crucial para esse novo momento.
Ele, que foi preso várias vezes em sua vida política, surgiu no final dos anos 1990 como visionário que cogitou a possibilidade de o país se tornar uma influência política internacional.
O investimento em infraestrutura foi essencial e Dae-jung apostou em transformar a Coreia do Sul em um país conectado à internet. Logo no início do século 21, o país se tornou um dos primeiros a oferecer banda larga em escala massiva para toda sua população, algo impensável 20 anos antes, quando o país sequer tinha água encanada para sua população.
Além de ter permitido viagens para o exterior, o presidente também baniu a censura sobre temas polêmicos. A combinação dessas duas medidas fez florescer uma geração de novos artistas. Estes, por sua vez, eram bancados pelas próprias chaebol, que investiam, a partir de orientação do próprio Dae-jung, em cultura.
A inspiração era a cultura norte-americana e como marcas daquele país conseguiram abrir caminho para que sua política e economia pudesse influenciar o planeta.
Da Coca-Cola às calças jeans Levi’s, passando por computadores da Apple, filmes de Hollywood, cigarros Marlboro e música pop foram centrais para expandir a influência dos Estados Unidos no resto do mundo. E foi assim que a Coreia do Sul começou sua dominação cultural do planeta.
Primeiro foram os seriados de TV, que começaram fazendo sucesso em países vizinhos, mas que pouco a pouco chegavam no Ocidente.
A culinária e a indústria de cosméticos da Coreia do Sul também foram cruciais para essa expansão – o próprio conceito de cuidados com a pele (skincare) explodiu globalmente graças a empresas coreanas.
Mas foi a música pop que quebrou as derradeiras barreiras.
Com a letra K como diferencial – K-Pop passou a designar a música feita no país -, a forma como a música era feita em escala industrial entrou num modelo de produção que criava boy bands e grupos de garotas que pouco a pouco saíam do que era aparentemente exótico para se tornar simplesmente popular.
Apenas quatro artistas que ascenderam entre a primeira e a segunda década deste século, Bang, Super Junior, PSY e Girls’ Generation – venderam mais de 200 milhões de discos no mundo todo.
PSY especificamente protagonizou o primeiro vídeo no YouTube a ultrapassar o primeiro bilhão de views do site, em 2013, com o pitoresco clipe de “Gangnam Style”.
2021, portanto, viu apenas a consolidação de uma onda que promete não parar de crescer. Já não nos referimos, por exemplo, ao grupo BTS como a maior banda de K-Pop do mundo – eles são o maior grupo pop do mundo, com números fenomenais.
O grupo formado por V, Suga, Jin, Jungkook, RM, Jimin e J-Hope ultrapassou os 11 bilhões de plays no serviço de streaming coreano MelOn.
Ao mesmo tempo, um de seus integrantes (V) atingia os 10 milhões de fãs no Instagram e o grupo tinha três entre as 10 canções mais ouvida nos EUA (“Butter” no topo, “Dynamite” em segundo e “Permission To Dance” em quinto).
Isso os equiparou a artistas americanos gigantes como Ariana Grande e Drake. Além disso, o BTS gravou um single, “My Universe”, com o grupo inglês Coldplay.
2021 marcou o ano em que eles abraçaram o inglês em suas músicas. O hit “Butter”, por exemplo, foi ouvido 11 milhões de vezes no dia em que foi lançado. E isso num ano em que o grupo só lançou canções – e não lançou nenhum álbum.
Para 2022 a escalada deve continuar vertiginosa. Depois de shows online e uma série de apresentações presenciais nos Estados Unidos, o BTS prepara-se para retomar os shows em março do ano que vem, que deve marcar, como o grupo anunciou no início deste mês, um “novo capítulo” em sua história.
Além da especulação de um novo álbum, também fala-se em uma turnê por todo o mundo (que começaria pela capital sul-coreana, Seul, e que poderia até vir para o Brasil).
Bong Joon Ho, por sua vez, prepara dois filmes: um de horror, falado em coreano, como Parasita; e outro, em inglês (como seus sucessos anteriores Okja e O Expresso do Amanhã), que trataria sobre um evento real que aconteceu em 2016.
Ele também deve produzir uma série derivada e ocidentalizada de Parasita como uma série para a HBO. Enquanto isso, a Netflix faz mistério sobre a segunda temporada de Round 6 e caça outras produções do país para incluir em seu catálogo.
Ao que tudo indica, 2021 foi só o começo da invasão coreana…