Quem vê o sorriso aberto da guarda municipal Jaqueline da Conceição, de 41 anos, e integrante da Ronda Maria da Penha (RMP) não imagina que ela já foi vítima de violência doméstica.
Jaqueline era filha adotiva, tinha problemas no lar que a acolheu e, aos 18 anos, viu no casamento a possibilidade de formar e ter sua própria família.
Mas o que era fuga virou rota para o abismo, e Jaqueline se viu oprimida pela sogra, que a maltratava quando o então marido ia trabalhar e, posteriormente, se viu atingida pelo próprio cônjuge.
“Os problemas começaram quando disse que queria continuar a estudar e a trabalhar. Ele dizia que mulher dele não trabalhava fora, ou que eu queria sair de casa para encontrar macho, caçar homem. Até consegui ir, mas cada vez que chegava em casa atrasada, ele me humilhava, dizia que estava com homem. Começou a ficar muito ruim e, nessa época, descobri uma traição”, lembra.
Mas o então marido da Jaqueline nem se abalou e fez da situação mais um motivo para humilhar a mulher.
“Ele dizia que não se importava porque eu não tinha família, não tinha para onde ir e tinha que aguentar o que ele quisesse. Disse que não, mas, enquanto não conseguia sair de casa, ele achava que tinha que continuar sendo mulher dele. Tentou me agarrar à força e, numa dessas vezes, eu reagi e ele me deu um soco. Como estava com uma chave na mão, me machucou e até hoje tenho a marca do furo que fez na minha testa. Reagi e disse que iria sair de qualquer forma. Que não ficaria mais ali. No dia seguinte, esperei ele ir trabalhar, peguei minhas coisas, meus dois filhos e fui embora”, conta.
Fome e agressão em frente ao fórum
Jaqueline conta que, enquanto sua mãe adotiva era viva, ela teve ajuda, mas depois que ela morreu, teve que ir trabalhar, cuidar de duas crianças sozinhas e dar conta de tudo.
Quando tentou pedir pensão na Justiça ao ex-marido, ele bateu nela após audiência, do lado de fora do fórum.
Foi assim que ela foi parar em um trabalho noturno em um fábrica, para poder ficar em casa com os filhos de dia. Ou contou com a ajuda de vizinho para olhar as crianças.
Nesse meio do caminho, o filho de 4 anos ficou muito doente. Teve um diagnóstico de anemia profunda. Jaqueline diz que, muitas vezes, enfermeiras que cuidavam do menino internaram a filha dela para que a família toda pudesse permanecer junta no hospital.
Pouco depois dessa época, uma irmã se ofereceu para pagar a inscrição para o concurso da Guarda Municipal.
Água com açúcar para espantar a fome
Mas novamente, não foi fácil. Ela passou, mas, ao ter que fazer o curso que habilita a se tornar guarda, teve que sair do emprego. Ela contou ao senhorio que não poderia mais pagar aluguel enquanto não fosse efetivada, ele aceitou. E viu sua turma de formação de guardas se reunir para montar uma cesta básica e deixar na sua casa porque sabia que, sem renda, muitas vezes Jaqueline não tinha o que comer.
Nessa lista tem uma vizinha que dava sopa e até um comandante que deixava ela levar os filhos para o trabalho, nos fins de semana, quando ela não tinha com quem deixar.
O ex-marido ameaçou tirar a guarda dos filhos de Jaqueline. Alegava que ela tinha saído do trabalho e não tinha como sustentar as crianças.
Apavorada, ela contou para uma instrutora da Guarda Municipal, que foi aconselhando, dando noção de leis, e ela viu que não iria perder os filhos.
E é esse mesmo conhecimento que ela faz questão de passar na Patrulha Maria da Penha da Guarda Municipal do Rio de Janeiro.
Ela diz que sua vivência na pele ajuda a se aproximar das vítimas que atende hoje em dia.
“Quando elas dizem: ‘Você não sabe o que eu estou passando. ’ Digo que sei sim, conto a minha história e elas me olham diferente”, diz.
Perguntada se já encontrou com casos parecidos com o seu, ela diz que quase todo dia topa com uma Jaqueline de 20 anos atrás, mas que as vítimas de violência doméstica hoje em dia têm mais recursos.
“Na Ronda Maria da Penha, a gente começa checando o cumprimento de uma medida protetiva. Depois, ouvimos a história da mulher e, dependendo das necessidades, encaminhamos para acompanhamento psicológico, jurídico, para um abrigo ou ajuda patrimonial. Na minha época, não sabia de nada disso, nem tinha Lei Maria da Penha”, diz ela que também faz palestras em igrejas sobre o assunto e não se amargurou diante das dificuldades que passou.
Perguntada o que diria para a Jaqueline de 20 anos atrás ou para mulheres que não sabem como sair de um ciclo de violência, ela enumera:
- Peça ajuda e reconheça que você não pode tudo sozinha;
- Tenha um objetivo e saiba onde quer chegar. Se não souber o que fazer ou que mudar, peça ajuda de novo;
- Aprenda a desenvolver amor próprio, isso te impulsiona para onde você quer chegar. Aprenda ainda a saber o que você não quer mais, isso evita repetir ciclos;
- Vá viver, se amar, se conhecer. Uma fase ruim não determina a sua história.
A Ronda Maria da Penha na GM
A Ronda Maria da Penha da GM-Rio foi criada em 2021 e atua na verificação do cumprimento de medidas protetivas. Os patrulheiros realizam os atendimentos com três agentes, tendo pelo menos uma guarda feminina na equipe. A principal missão exercida é a verificação do cumprimento das medidas protetivas, criadas para coibir atos de violência doméstica e familiar.
Em 2023, até o dia 2 de março, já foram registradas 2.504 ações de acolhimento (visitas, ligações e acompanhamento em geral) e 1.424 mulheres assistidas. Também foram realizadas quatro prisões.