Bases de dados desatualizadas e decisões políticas podem ter deixado de fora pessoas que tinham direito a receber o Auxílio Emergencial de R$ 600, criado para combater os efeitos econômicos do novo coronavírus. Até agora, 36,8 milhões de pessoas receberam resposta negativa ao pedido do benefício. Parte delas pode ter ficado sem o dinheiro por engano.
A segunda parcela do auxílio começará a ser paga nesta segunda-feira (18), seguindo um calendário informado pela Caixa Econômica Federal.
O benefício pode ter sido negado, por exemplo, a pessoas que perderam o emprego depois do dia 16 de março — graças à base de dados escolhida pelo governo para decidir quem tem direito ou não ao benefício. Assim, pessoas cujas empresas foram atingidas pela crise econômica provocada pelo vírus podem ter ficado sem o auxílio.
Também podem ter sido excluídas pessoas que tenham sido candidatas ou eleitas como suplentes de vereador nas últimas eleições municipais, em 2016 — independente do número de votos recebidos. Isto porque o governo decidiu cruzar dados com o Tribunal Superior Eleitoral, mesmo sem previsão legal.
Além disso, o Ministério da Cidadania também resolveu vetar o recebimento do benefício por parte de pessoas que tenham familiares presos, mesmo aquelas que tinham direito ao auxílio — novamente, sem qualquer previsão na lei que criou o benefício.
Apesar da negativa aparecer em documentos oficiais, o ministério negou à reportagem da BBC que tenha impedido a entrega do benefício a este grupo.
No caso dos familiares de presos, quase 40 mil pessoas podem ter sido atingidas, segundo o próprio Ministério. Os problemas foram constatados por especialistas em políticas públicas e procuradores da República com base em informações fornecidas pelo governo à Procuradoria Federal dos Direitos do Cidadão (PFDC) do Ministério Público, na última quarta-feira (13).
Ao mesmo tempo, os cruzamentos de dados feitos pelo Ministério da Cidadania e pela Dataprev (empresa pública de gestão de dados) não evitaram que pelo menos 73.242 pessoas ligadas ao Ministério da Defesa recebessem o benefício, possivelmente de forma irregular. Em nota, a pasta disse que R$ 43,9 milhões foram distribuídos a militares da ativa, da reserva, pensionistas e anistiados.
Segundo o governo, 59,2 milhões de pessoas já foram beneficiadas com R$ 35,5 bilhões do auxílio emergencial até agora.
Até esta quinta-feira (14), 1,53 milhão de pedidos seguiam “em análise” pela Dataprev, e outros 4,19 milhões de pedidos seguiam aguardando o processamento.
Estes números, no entanto, representam uma pequena fração do total de 118,2 milhões de pedidos de auxílio apresentados. Do total, 112,5 milhões (ou 95,2%) já tinham sido processados pela Dataprev.
A origem do problema
Quando uma pessoa se cadastra para receber o Auxílio Emergencial, as informações prestadas por ela são conferidas em uma série de bases de dados do governo — para saber se o pedido se enquadra nos critérios definidos em lei.
No entanto, a escolha de algumas dessas bases de dados pode ter feito com que pessoas que tinham direito ao benefício ficassem privadas do Auxílio.
Para saber se a pessoa tinha emprego formal, por exemplo, foi usada a base de dados do Cadastro Nacional de Informações Sociais (CNIS) — atualizada até o dia 16 de março. Quem perdeu o emprego depois desta data, portanto, teve o pedido negado. Mesmo que estivesse dentro dos critérios determinados pela lei.
Em outro caso, o Ministério da Cidadania e a Dataprev decidiram confrontar os pedidos do auxílio com o repositório de dados eleitorais do TSE — para evitar que políticos com mandato eletivo recebessem o benefício. O órgão, no entanto, decidiu vetar o benefício até mesmo para pessoas que ficaram como suplente de vereador nas eleições municipais de 2016, sem assumir qualquer cargo.
O Ministério da Cidadania também extrapolou o que diz a lei ao deixar de fora do benefício às pessoas com familiares presos. A restrição foi revelada pela Dataprev na resposta ao Ministério Público.
“Ficou estabelecida, pelo Ministério da Cidadania, ainda que de forma não definitiva, a restrição de concessão do Auxílio Emergencial a requerente ou membro de grupo familiar constante das bases de dados referenciadas”, disse a Dataprev na resposta ao Ministério Público.
“Para esses casos (parentes de presos) ficou determinada, pelo Ministério da Cidadania, o enquadramento na classificação ‘Retidos’ para posterior definição definitiva acerca da concessão”, acrescentou o órgão.
Especialistas em políticas públicas dizem que o governo deveria ter sido mais cauteloso ao determinar quais cruzamentos de dados seriam feitos, e quais bases de dados seriam usadas.
“É um cruzamento de informações que não é consistente o suficiente para a gente ter segurança de que as pessoas (que têm direito ao Auxílio) serão contempladas”, diz Leandro Ferreira, mestre em políticas públicas pela Universidade Federal do ABC e presidente da Rede Brasileira da Renda Básica, um grupo de pressão que defende a adoção deste tipo de política de distribuição de renda.
“Começou com aquele erro grave do CPF: um monte de gente foi excluída por estar com o CPF irregular, por não ter votado nas últimas eleições. Sendo que o CPF não era uma exigência da lei”, disse ele.
“Se o governo fosse mais transparente, e mais aberto a colaborações, isto não teria acontecido”, diz Ferreira.
Restrição a familiares de presos é ilegal, diz procurador
Para o procurador Julio José Araujo Junior, um dos responsáveis pelo pedido de informações ao Ministério da Cidadania, a pasta terá agido de forma ilegal caso fique provado que impediu deliberadamente o recebimento de pessoas que tinham direito ao auxílio emergencial.
Julio José diz que as informações reveladas pela Cidadania e pela Dataprev deverão ser levadas em conta em ações judiciais que discutem o acesso ao auxílio emergencial.
“Mas é possível também fazer uma abordagem específica. Certamente que medidas serão tomadas (em relação aos problemas)”. A Procuradoria Federal dos Direitos do Cidadão (PFDC) não descarta formular uma recomendação sobre o assunto, segundo ele.
Ao longo do mês de maio, o MPF pediu a instauração de inquéritos para apurar irregularidades e atrasos no pagamentos em vários estados do Brasil — há procedimentos em curso no Piauí, no Rio Grande do Sul, no Rio de Janeiro, Sergipe e no Distrito Federal.
Em Sergipe, por exemplo, a ação civil pública formulada pelo MPF inclui um pedido para que sejam atualizados os dados das pessoas que perderam o emprego, para evitar que pessoas fiquem sem acesso ao benefício por causa da desatualização das bases de dados.
Problemas serão corrigidos, diz Ministério da Cidadania
A reportagem da BBC News Brasil questionou o Ministério da Cidadania sobre as falhas na entrega do auxílio.
No caso dos desempregados, a desatualização da base de dados “Não significa que o trabalhador desempregado ficará sem o auxílio emergencial, caso se enquadre nos critérios legais para receber. Tudo dependerá do momento em que ele solicitar o auxílio”, diz a pasta, em nota.
Sobre as pessoas que foram candidatas, o ministério disse “a regra foi ajustada para reanálise” e que o problema será corrigido.
“Com relação ao processo de elegibilidade de cidadãos que foram candidatos nas eleições de 2018, não eleitos, e tiveram seu auxílio negado em primeira análise, o Ministério da Cidadania e a Dataprev esclarecem que não será necessário recadastrar ou fazer qualquer operação no aplicativo. A regra foi ajustada para reanálise, iniciada em 30 de abril, e todos que tiverem direito receberão as 3 parcelas do benefício”, disse a pasta.
A respeito dos familiares com pessoas presas, o Ministério da Cidadania contrariou a informação prestada pela Dataprev e disse que não há retenção dos benefícios para os familiares de presos — apenas dos próprios detentos.
“Cadastros feitos com CPF de detento como requerente não serão aprovados, pois não se encaixam no critério de trabalhador”, diz a pasta, em nota.
“Segundo a Dataprev, dos 98 milhões de requerimentos processados pela empresa, foi identificado 1,5 milhão CPFs que apresentaram complexidade de cenários, ou seja: 1,5%. Deste total (1,5 milhão), 39.251 requerimentos foram apresentados por detentos ou contém detentos na sua composição familiar”, continua o texto.
Um defensor público do Estado de São Paulo observou que “detentos” que peçam o benefício podem na verdade ter acabado de deixar o cárcere — situação na qual dificilmente encontrarão trabalho.
“Se cadastrou com o CPF de alguém cumprindo pena é provável que ele esteja em regime aberto ou livramento condicional, situações que dificultam ainda mais a colocação no mercado de trabalho”, disse, em anonimato.
O Ministério da Cidadania disse ainda que o familiar de preso não poderá receber o Auxílio Emergencial se já estiver recebendo outro benefício, como auxílio reclusão.
Ampliação do Auxílio
Na sexta-feira, o presidente Jair Bolsonaro sancionou com vetos um projeto de lei aprovado pelo Congresso no fim de abril, que estendia o alcance do Auxílio Emergencial aos trabalhadores informais.
O presidente decidiu vetar um trecho do projeto que listava categorias profissionais específicas que teriam direito ao benefício, tais como motoristas e entregadores de aplicativos, como Uber e IFood; pescadores artesanais; agricultores familiares e catadores de materiais recicláveis, entre outros. Os vetos serão agora analisados pelo Congresso, que pode mantê-los ou não.
Do jeito que está, o projeto passou a garantir ao acesso a mães menores de 18 anos. O presidente também vetou um trecho que permitia a pais solteiros receber o auxílio em dobro.