Na terça-feira (23), a Associação Médica Brasileira (AMB) mudou de posicionamento sobre os remédios do chamado “kit Covid” – que incluem medicamentos como a hidroxicloroquina e a ivermectina – e passou a recomendar que eles sejam “banidos” do tratamento da Covid-19.
O novo presidente da associação, o médico César Eduardo Fernandes, disse, em entrevista ao G1, que a autonomia do médico não lhe dá o direito de prescrever remédios ineficazes.
O médico avaliou que, se pacientes receberem uma receita com os medicamentos do “kit”, vale buscar uma segunda opinião.
Eficácia e segurança
O primeiro posicionamento da AMB é de julho de 2020. Na época, a entidade disse que “o derby político em torno da hidroxicloroquina deixará um legado sombrio para a medicina brasileira, caso a autonomia do médico seja restringida, como querem os que pregam a proibição da prescrição da hidroxicloroquina”.
A associação também disse que, até então, os estudos que apontavam a ineficácia da hidroxicloroquina para a Covid tinham “fragilidades”. Outros estudos desse tipo já haviam sido publicados em revistas científicas respeitadas internacionalmente antes que a AMB se posicionasse (veja detalhes mais abaixo).
Presidente da entidade desde janeiro, Fernandes preferiu não comentar as decisões da gestão anterior. Ele afirmou que, com a nova diretoria, um comitê de monitoramento da Covid foi montado dentro da associação. Depois de analisar evidências científicas, o grupo decidiu, de forma unânime, que elas não sustentavam o uso da hidroxicloroquina e outros medicamentos do “kit”.
O uso da hidroxicloroquina pode trazer efeitos colaterais sérios, como a arritmia cardíaca. Em Campinas (SP), médicos confirmaram, também na terça-feira (23), o primeiro caso de hepatite medicamentosa relacionada ao “kit Covid”. Complicações em pacientes também já haviam sido vistas na Paraíba em janeiro. Chefes de UTIs também ligaram o uso dos remédios a maior risco de morte.
César Eduardo Fernandes explica, ainda, que o “kit Covid” também não passou no segundo crivo de uso, que é o da eficácia.
Estudos comprovam ineficácia
Na carta de 2020, a AMB apontava que “não existem estudos seguros, robustos e definitivos” sobre o uso da hidroxicloroquina. A entidade apontava “fragilidade” nos estudos até então existentes sobre o assunto.
Alguns deles, entretanto, haviam sido publicados em revistas ou liderados por cientistas de renome internacional. Antes que uma pesquisa seja publicada em uma revista, ela precisa passar pela avaliação de outros cientistas, independentes, que determinam se ela foi, basicamente, bem conduzida ou não.
Veja algumas dessas pesquisas:
- no início de maio, um estudo feito nos Estados Unidos mostrou que a hidroxicloroquina não melhorou o quadro de pacientes hospitalizados com Covid-19. O artigo foi publicado no “New England Journal of Medicine”.
- também em maio, uma pesquisa feita na China mostrou que o remédio não funcionava em casos leves a moderados. O estudo saiu no “The British Medical Journal”.
- em junho, uma pesquisa com 821 pacientes mostrou que a hidroxicloroquina também não funcionava para prevenção da Covid-19. Também foi publicada na “The New England Journal of Medicine”.
- em julho, quatro dias antes da publicação da primeira nota, uma pesquisa feita nos Estados Unidos reforçou o achado de que a hidroxicloroquina não funcionava em casos leves de Covid; publicada na “Annals of Internal Medicine”.
- no mesmo dia, um ensaio coordenado pela Universidade de Oxford associou a hidroxicloroquina ao agravamento de casos de Covid-19 e mortes.
- ainda no mesmo mês, no dia 22, dois novos estudos publicados na ‘Nature’ mostraram que a cloroquina e hidroxicloroquina são ineficazes.
Três dias antes da nota da AMB, a Sociedade Brasileira de Infectologia (SBI) também divulgou posicionamento afirmando que a hidroxicloroquina deveria ser abandonada no tratamento da Covid-19.
“Portanto, é responsável que nós, como associação médica, nos posicionemos. Claro, seremos muito atacados por aqueles que pensam diferente – nós temos resiliência o suficiente para não entrar numa disputa sanguinolenta, fratricida, com aqueles que, passionalmente ou por convicções, defendem o contrário. É assim que a vida caminha”, afirmou César Eduardo Fernandes em entrevista ao G1.
Ele declarou que “a linha de conduta da AMB não é para atender ideologias ou partidos políticos”.
Uso ‘off-label’ não é a mesma coisa
Na carta do ano passado da AMB, a entidade havia afirmado que “o uso off label de medicamentos é consagrado na medicina, desde que haja clara concordância do paciente”. Esse tipo de uso significa, literalmente, recomendar um medicamento para fins que não estejam na bula – mas que, de acordo com a experiência e julgamento do médico, pode funcionar para o paciente.
César Fernandes explicou, entretanto, que o uso “off-label” não pode ser comparado ao “kit Covid”.No caso da hidroxicloroquina, há estudos comprovando que ela não funciona.
“Muitas indicações off-label, adiante, são inclusive transportadas de volta para a bula, porque aquelas observações que os médicos tinham pela sua experiência são testadas e passam a ser aprovadas. Muitas indicações começaram off-label”, confirmou o presidente da associação.
Código de ética
A AMB não foi a única a se posicionar defendendo a “autonomia do médico” na prescrição do “kit”. A Sociedade Brasileira de Cardiologia (SBC) disse que não recomendava o uso da cloroquina, mas que iria ajudar a monitorar efeitos colaterais com eletrocardiograma.
O Conselho Federal de Medicina (CFM) disse ao presidente, Jair Bolsonaro (sem partido), que não recomendava a hidroxicloroquina, mas liberou a receita em 3 casos de pacientes com Covid.
O código brasileiro de ética médica, disponível on-line no site do CFM, diz, no artigo 1º do capítulo 3, que, em sua responsabilidade profissional, é vedado ao médico “causar dano ao paciente, por ação ou omissão, caracterizável como imperícia, imprudência ou negligência”.
O G1 questionou o CFM sobre os seguintes pontos, sem obter resposta até a publicação desta reportagem:
- levando em conta que o uso da hidroxicloroquina pode causar dano ao paciente com Covid, os médicos que usam o medicamento – ou outros do “kit Covid”, como a cloroquina, a ivermectina e a azitromicina – para a Covid estão infringindo o código de ética médica?
- caso estejam, qual é a punição prevista em lei para esta infração? O CFM tem poder de autuação nesses casos? O direito de exercício da medicina pode ser cassado?
Ao Jornal Nacional, o presidente do CFM, Mauro Ribeiro, disse que “o parecer do Conselho Federal de Medicina não dá suporte ao chamado ‘kit Covid’. Nós defendemos que o paciente com sintomas gripais tem que ser acompanhando pelo médico de forma precoce. Fazer o acompanhamento de forma precoce, que não quer dizer fazer tratamento precoce” (veja vídeo no topo desta reportagem).
Monitoramento é o mais importante
César Fernandes, da AMB, explicou que, ao receber um diagnóstico de Covid-19, o paciente deve buscar acompanhamento médico – se possível, por telemedicina – para acompanhamento do quadro.
Os medicamentos que são indicados são aqueles que tratam sintomas, como febre e dor. Acompanhar a saturação com um oxímetrotambém é recomendado.
“Podemos tratá-lo com medicações sintomáticas – para febre, para dor, para o que se faça necessário – e monitorar a sua função pulmonar. Mas o paciente vai perguntar para o médico: ‘mas você não tem nenhum remédio para me dar que possa impedir que eu caminhe para essa situação [grave]?’ Eu entendo que, pelos conhecimentos vigentes, pelas melhores evidências, [o médico] vai ter que dizer ‘eu lamento muito, me entristeço muito, em lhe dizer que eu não tenho remédio’. Infelizmente“, esclareceu.