O antropólogo professor e filósofo Claude Lévi-Strauss não fez apenas uma simples visita a Guajará-Mirim na década de 1930. Viajou para o antigo Matto Grosso [grafia original], passando por Vilhena e Pimenta Bueno, e alcançou a região do Guaporé, onde estudou por longos meses seus seringais, seus índios e sua gente.
Neste sábado (10), Guajará-Mirim, na margem direita do rio Mamoré, faz 92 anos. Foi desmembrada de Santo Antônio do Rio Madeira pela Lei nº 991, de 12 de julho de 1928. Até então conhecido apenas no estado vizinho, da qual fora desmembrado, este município da fronteira Brasil-Bolívia, a 362 quilômetros de Porto Velho, passou a existir para o mundo quando lembrado por Strauss, notável fundador da antropologia estruturalista, que deu aulas de sociologia na Universidade de São Paulo (USP) e morreu em novembro de 2009, aos cem anos.
Com 46 mil habitantes, é o oitavo município em população no Estado de Rondônia. Segundo em extensão territorial, tem área de 24,8 mil quilômetros quadrados e ganhou em 2008, do Instituto Ambiental Biosfera, no Rio de Janeiro, o título de Cidade Verde, em razão do mosaico de áreas protegidas no interior do município.
Strauss colheu nestas “terras de Rondon” a essência de sua obra consubstanciada no livro “Retratos Brasileiros dos Tristes Trópicos” (1955). Ou seja: até 1938, quando o antropólogo liderou a expedição à Serra do Norte (MT) e seguiu em suas pesquisas, a futura Rondônia não tinha identidade.
“Até o início do século XIX, Guajará-Mirim era apenas uma indicação geográfica para designar o ponto brasileiro à povoação boliviana de Guayaramerín”, escreveu o falecido Vitor Hugo em seu livro, Os Desbravadores.
Reivindicando para si outro título pomposo, o de “guardião da história de Rondônia”, o município teve na história da imprensa amazônica um jornal editado em língua indígena, o Txapacura. Guardião, porque reúne os fatos dos primórdios de sua colonização, desde a saga dos pioneiros construtores da lendária Estrada de Ferro Madeira-Mamoré (EFMM); à presença marcante da Igreja Católica na colonização de todo o Vale do Guaporé; e às diversas construções do período áureo da extração da borracha e da castanha.
Em 30 de abril de 1912 a população festejou a conclusão da Madeira-Mamoré, que fora inaugurada oficialmente em 1º de agosto do mesmo ano e em outubro, o Governo da Província de Matto Grosso instalara um posto fiscal na cidade.
O visitante que for ao museu do município encontra exemplares de antigos jornais, diversos registros históricos e até mesmo a bicicleta Phillips de Dom Francisco Xavier Elias Pedro Paulo Rey, o conhecido dom Rey, francês e primeiro bispo católico da antiga Prelazia. Um homem que andava de bicicleta, mas também navegava em jangadas, sem camisa, nas desobrigas pelas comunidades que margeiam o rio Guaporé.
ANTES, O TREM
Com a assinatura do Tratado de Petrópolis em 17 de novembro de 1903, o Brasil comprometeu-se com a Bolívia a construir uma estrada de ferro, ligando os portos de Santo Antônio do Rio Madeira, em Porto Velho, ao de Guajará-Mirim, no rio Mamoré, destinada ao escoamento dos produtos bolivianos.
Os direitos sobre tarifas seriam recíprocos e a localidade foi se tornando conhecida no país com repercussão no exterior. No ciclo da borracha, a extração do látex foi ponto decisivo na vida do município.
A construção da Madeira-Mamoré acelerou o povoamento local e contribuiu com o incremento da agricultura, fomentando o extrativismo vegetal. Deu subsistência à cidade. Três décadas depois, tal qual no Mississipi (EUA), o Guaporé viu chegado o momento de explorar seus caudalosos rios, antevendo-se um futuro comercial de importações e exportações de mercadorias diversas entre os dois países vizinhos.
A linha férrea e todos os serviços da lendária Madeira-Mamoré foram extintos em 1972 pelo Governo Federal e a saudade das antigas viagens só foi diminuída em 1984, quando o ex-governador Jorge Teixeira de Oliveira mandou recuperar locomotivas e vagões, restaurando o percurso de 20 quilômetros entre Guajará-Mirim e o Distrito de Iata, que foi projeto de colonização do Incra.
NAS ÁGUAS, A RAZÃO DE VIVER
Em 1917, o capitão Manoel Teófilo da Costa Pinheiro, um dos membros da Comissão Rondon viajou pelo rio Cautário e afluentes, onde encontrou centenas de seringueiros mourejando nos barracões da Guaporé Rubber Company que monopolizava a borracha nos barracões Rodrigues Alves, Santa Cruz, Renascença e outros localizados próximos ao Forte Príncipe da Beira, em Costa Marques.
Diversos povos indígenas originários da região resistiram aos seringueiros, tanto em sua presença quanto em sua posterior tentativa de dizimá-los, a exemplo de grupos e subgrupos indígenas. “Por meio de seus sócios, a Rubber Company ousou criar e fazer funcionar no início do século passado uma empresa de transporte fluvial, com a finalidade de fomentar, na outra ponta, a produção gumífera”, conta o escritor e acadêmico de letras Paulo Cordeiro Saldanha.
Segundo ele, os empresários da época receavam que os seringais de cultivo plantados pelos ingleses no Sudeste asiático, [Ceilão, na Malásia, etc] pudessem cair nas mãos dos alemães ou japoneses, após a biopirataria das sementes e mudas das seringueiras guaporeanas. Estava nas águas, portanto, a razão de viver produzindo mata adentro.
UMA HISTÓRIA DE AMOR PELA NAVEGAÇÃO
“O Ocidente sempre se preocupava com essa possibilidade, porque desde há muito tempo se falava na avidez de outros povos no avanço de terras alheias; em 1917 acabou eclodindo a 1ª Guerra Mundial, e a Guaporé Rubber veio trabalhar neste noroeste brasileiro, respondendo ao estímulo da produção da borracha que seria aqui impulsionada, ao lado da castanha, peles silvestres e, mais tarde, visando a indústria farmacêutica, a ipecacuanha, a conhecida poaia”.
O funcionamento dessa companhia de navegação coube ao coronel da Guarda Nacional, Paulo Cordeiro da Cruz Saldanha, mais tarde controlador majoritário. No final dos anos 1940, ele transferiu o patrimônio para o governo federal, quando foi criado o Serviço de Navegação do Guaporé (SNG).
“Tudo seguia com os mesmos objetivos: transportar pessoas, gêneros e demais cargas, levando o correio, enfim, unindo as populações ribeirinhas dos rios Mamoré, Guaporé e seus afluentes”, comenta o escritor, filho do coronel.
O SNG teve uma ação socioeconômica muito reprodutiva, transportando passageiros e cargas, recolhendo no alto dos barrancos dos rios a safra dos seringais, dos castanhais, gado e poaia. Possuía um contingente de funcionários que, nos dias de pagamentos dos salários, inflava o comércio de dinheiro. “Nos anos 1950 e 60, lembra Paulo Saldanha, o estaleiro do SNG produzia balsas e batelões de madeira, ou com chapas de ferro, fruto do trabalho de seus mestres nessa área”.
Era outra Guajará-Mirim, sem dúvida, ele acredita. “Naquele tempo os administradores públicos inventavam os meios, com criatividade, pertinácia, vontade e idealismo, não se submetiam às dificuldades e faziam acontecer”.
Em 1956, o deputado federal mato-grossense Joaquim Vicente Rondon [eleito em 1954 e adversário político do coronel Aluísio Ferreira, primeiro governador do extinto Território Federal do Guaporé] iniciou a elaboração do projeto de lei que mudou o nome do território de Guaporé para Rondônia. Conservadores conhecidos por cutubas protestaram em Porto Velho e em Guajará-Mirim.