Como os primeiros seres humanos chegaram ao continente americano? Como se expandiram por regiões tão diferentes, desde as geleiras canadenses ao litoral brasileiro? E qual era a relação entre os povos que dividiram territórios próximos, mas completamente distintos, como os Andes e a Amazônia?
Muitas dessas perguntas começaram a ser respondidas com mais precisão na última década, graças ao avanço da genética e das técnicas que permitem avaliar e comparar a ancestralidade de duas ou mais pessoas.
Mais especificamente na América do Sul, essas ferramentas de análise do DNA estão causando uma verdadeira revolução no conhecimento — e permitem entender melhor as origens e as histórias dos povos originários.
Esse trabalho é liderado por um grupo de cientistas do Departamento de Genética e Biologia Evolutiva do Instituto de Biociências da Universidade de São Paulo (USP).
Nos últimos anos, a equipe coordenada pela geneticista Tábita Hünemeier publicou pelo menos três trabalhos que modificaram o que se sabia sobre as populações que já habitavam o continente bem antes da chegada dos europeus nos séculos 15 e 16.
“Graças à genética e à capacidade de processamento de dados pelos computadores, conseguimos hoje estudar essas populações de uma maneira muito mais profunda. A partir disso, detectamos mutações e traçamos a história desses indivíduos”, resume Hünemeier.
“Saber tudo isso é muito importante, porque temos praticamente um apagão da história indígena brasileira. Nas escolas, o estudo da época pré-colombiana não é obrigatório e, mesmo quando existem aulas sobre o tema, elas focam de forma superficial apenas nos incas, nos maias e nos astecas.”
“O DNA talvez seja a única maneira de reconstruir a história dessas populações”, completa.
Conheça a seguir as principais descobertas sobre o passado dos povos indígenas do Brasil e da América do Sul até agora — e o que ainda falta descobrir.
Os primeiros humanos nas Américas
Nas aulas de História na escola, aprendemos que a chegada dos primeiros indivíduos às Américas se deu pelo Estreito de Bering, um canal de gelo e terra firme que conectou a Sibéria, na Rússia, ao Alasca, nos Estados Unidos.
E esse trajeto continua a ser encarado como a principal — e talvez a única — porta de entrada para o continente. A partir dali, os grupos “desceram” até chegar à Patagônia, ao sul.
“Mas nossos trabalhos mostram que o povoamento das Américas é muito mais complexo do que se imaginava”, aponta Hünemeier.
Um dos conceitos que caiu por terra a partir das pesquisas da USP é a ideia de uma entrada única — ou seja, a teoria de que houve apenas uma incursão de seres humanos pelo novo território, que deu origem a todas as populações ameríndias dali em diante.
“Hoje em dia, vemos que foram vários fluxos migratórios. As populações vieram da Ásia e chegaram nessa região conhecida como Beríngia, que se conectava com as Américas. Mas elas permaneceram ali por cerca de 10 mil anos”, calcula a pesquisadora.
Depois, com a mudança nas condições climáticas locais — como a inundação desses territórios —, essas populações tiveram que sair da Beríngia e foram em direção ao que conhecemos hoje como Alasca e Canadá.
Outra vantagem dessa mudança de território pode ter sido a maior quantidade de recursos em terras americanas. Embora a porção norte do continente seja tão fria quanto a Sibéria, ela apresenta uma umidade maior, o que facilita o desenvolvimento da fauna, com mais possibilidade de caça e alimentos.
“Também vimos que essas ondas migratórias da Beríngia não aconteceram todas ao mesmo tempo. Elas ocorreram em levas, e grupos foram chegando aos poucos às Américas”, explica Hünemeier.
Outra descoberta interessante das pesquisas foi a de que algumas populações nativas da América do Sul, como os suruí, os karitiana, os xavante e os guarani-kaiowá, no Brasil, e os chotuna, no Peru, ainda trazem no genoma uma pequena, mas estável semelhança com povos da Austrália e da Oceania.
Segundo o trabalho, eles compartilham 3% do genoma.
Isso indica, segundo Hünemeier, que esses indivíduos seriam descendentes de uma daquelas primeiras levas que cruzaram a Beríngia há cerca de 15 mil anos.
Esse grupo antepassado é conhecido entre os cientistas como população Y (a letra inicial de ypykuéra, ou “ancestral” em tupi).
Que fique claro: não há nenhuma evidência de que povos da Oceania cruzaram o Pacífico e chegaram diretamente à América do Sul. O que muito provavelmente aconteceu, segundo os dados mais recentes, foi a migração deles para a Ásia e depois para a Beríngia.
Ali, eles se relacionaram com as populações que já habitavam o local — e uma fração do DNA desses indivíduos se preservou até hoje.
A (intensa) troca entre povos andinos e amazônicos
O biólogo Marcos Araújo Castro e Silva, que faz parte da equipe de Hünemeier, explica que, durante muito tempo, acreditava-se que as dinâmicas populacionais eram muito diferentes na América do Sul.
“Por um lado, teríamos grandes populações conectadas nos Andes, que teriam dado origem a impérios, como os incas. Do outro, acreditava-se que os povos da Amazônia eram pequenos e isolados”, contextualiza.
Em tese, essa teoria poderia ser explicada pelo DNA. Se isso fosse de fato verdade, a tendência era que a diversidade genética dos andinos fosse vasta — já que eles estariam em maior número e com comunidades conectadas —, enquanto os amazônicos teriam uma menor variabilidade genômica — porque seriam poucos e sem muita relação entre os grupos.
“Só que não foi isso o que vimos na prática. Com base na diversidade genética que encontramos entre os habitantes da Amazônia, podemos inferir que existiam grandes populações ali, com milhões de indivíduos”, pontua Castro e Silva.
Esse achado, aliás, vai ao encontro do que é observado em outras áreas do conhecimento. Em trabalhos publicados recentemente pelo arqueólogo Eduardo Góes Neves, também da USP, há estimativas de que a Amazônia teria abrigado entre 8 e 10 milhões de pessoas no passado, antes da chegada dos europeus.
Outro mito que cai por terra a partir das últimas pesquisas é a chamada “divisão Andes-Amazônia”. Segundo essa noção, existiria uma pretensa separação entre os povos que habitavam essas duas regiões, de modo que eles não se relacionavam.
“As análises genéticas revelam que isso não acontecia, e essas populações tiveram trocas e contatos”, afirma Hünemeier.
A grande expansão Tupi
“A expansão tupi é uma das maiores migrações da história da humanidade”, diz a geneticista.
“Em resumo, eles saíram do noroeste da Amazônia e andaram mais de 4 mil quilômetros para vários cantos da América do Sul. E isso tudo aconteceu em cerca de mil anos.”
De acordo com as pesquisas, essas populações tupi estavam em franco crescimento e foram margeando os rios ou a costa litorânea, em busca de terras férteis para a agricultura.
Esse fenômeno começou mais ou menos há 2,1 mil anos e teria atingido o seu pico no ano 1000, quando a população tupi teria de 4 milhões a 5 milhões de indivíduos.
“Antes, acreditava-se que essa onda migratória tinha acontecido por uma rota só”, diz Hünemeier.
Os trabalhos da USP mostram que a expansão se iniciou no noroeste amazônico e, já na origem, se desmembrou em três ramos principais.
A primeira parte seguiu até a Ilha de Marajó, no Pará, e desceu pela costa do Atlântico até o litoral sul de São Paulo — no caminho, deu origem aos tupinambá, tupiniquim e tamoios, grupos que se tornaram os senhores da costa litorânea e fizeram os primeiros contatos com os portugueses.
“Um segundo grupo foi em direção ao sul, na borda da Bolívia e Paraguai, e deu origem aos Guarani. O terceiro, por sua vez, seguiu para o oeste, na região da fronteira entre Brasil e Peru”, completa.
A pesquisadora entende que esse é um feito notável, já que falamos de uma sociedade que não tinha acesso a metalurgia ou exércitos organizados.
“Os tupis se locomoveram em grupos grandes e, conforme encontravam outros indivíduos, lutavam ou desviavam o caminho”, explica.
Uma evidência dessa “dominação” vem da Amazônia peruana: lá, é possível encontrar o povo kokama, que há gerações fala tupi.
Mas a análise do DNA de integrantes dessa população mostra que eles são muito mais semelhantes geneticamente aos chamicuro, que são seus vizinhos e falam a língua arawak.
“Ou seja, eles adotaram a língua tupi, mas, geneticamente, são mais próximos de outro povo”, explica Hünemeier.
“Essa pode ter sido uma assimilação cultural que ocorreu a partir da expansão tupi, e corrobora algo que já foi sugerido por estudos de outras áreas.”
A ascensão tupi foi seguida por uma queda vertiginosa.
“Tivemos o crescimento dessa população até chegar aos 5 milhões de indivíduos. Porém, um pouco antes da chegada dos portugueses, ela entra em declínio”, observa.
Ainda não se sabe muito bem os motivos disso — as principais suspeitas são mudanças climáticas ou uma tensão populacional por recursos cada vez mais escassos.
“Quando os europeus se instalam, então, acontece um desastre. A partir dali, estimamos uma redução de 98% na população tupi, números semelhantes ao que foi observado entre os povos que habitavam o México e a América Central”, calcula Hünemeier.
Os tupiniquim estão entre nós
Para fechar a lista de descobertas, o grupo da USP conseguiu restaurar por meio da genética a história e a origem dos tupiniquim.
Hünemeier conta que essa população era considerada completamente desaparecida.
“Eles não estão no censo do IBGE e eram declarados extintos desde o século 19”, diz ela.
Mesmo assim, alguns moradores de Aracruz, no Espírito Santo, sempre declararam pertencer à etnia tupiniquim.
A análise genética feita pelo grupo da USP mostrou que, de fato, os tupiniquim nunca foram extintos, e os genes deles estão presentes nesses indivíduos até hoje.
“Eles nos disseram que sempre lutaram muito para que fossem ouvidos. É claro que nós nunca duvidamos — se eles se consideram tupiniquins, são tupiniquins —, mas agora há um dado que corrobora e dá força ao que sempre defenderam”, destaca a geneticista.
Com isso, os indígenas tupiniquim de Aracruz se juntam aos tupinambá da Bahia e aos potiguara da Paraíba como os últimos remanescentes dos povos tupi que ocupavam o litoral na época das grandes navegações europeias.
Ela conta que, depois de concluir o estudo, a equipe de cientistas foi mostrar os resultados aos participantes.
“Daí, nós contamos que eles tinham vindo do norte, e não a partir dos guarani do sul, que chegaram a ser uma população de 100 mil pessoas e, hoje, são cerca de 3 mil”, afirma.
“E foi interessante ver os caciques dizendo que já sabiam daquilo tudo. Porque eles têm muito forte as questões da ancestralidade e da transmissão do conhecimento de geração em geração”, complementa.
Muito trabalho pela frente
Mas como é possível descobrir tanta coisa sobre o passado?
Castro e Silva explica que nosso DNA é formado por 3 bilhões de letrinhas (ou pares de bases nitrogenadas, no jargão científico). Elas formam o genoma e definem basicamente todas as nossas características físicas e condições de saúde.
“Dessas 3 bilhões, 99,9% são idênticas em todos os seres humanos. Mas há 0,1% que varia de pessoa para pessoa”, calcula o cientista.
Esse 0,1% pode até parecer pouco, mas, em um universo de 3 bilhões de bases nitrogenadas, representa um espaço para 3 milhões de “letrinhas” diferentes.
“Ao comparar isso, conseguimos inferir qual a relação entre dois indivíduos, de acordo com as mutações compartilhadas ou não entre eles”, diz o geneticista.
Ao coletar amostras de DNA no sangue e na saliva das populações indígenas, os cientistas usam equipamentos para fazer o sequenciamento genético. Depois, todas essas informações são comparadas e classificadas por computadores muito potentes.
E, embora o esforço de pesquisa já tenha encontrado algumas peças deste enorme quebra-cabeça, o trabalho está apenas começando.
“Queremos montar uma espécie de fotografia de como era o Brasil em 1499, antes da chegada dos portugueses. A partir daí, poderemos voltar ou avançar no tempo para entender as dinâmicas populacionais e migratórias”, avalia Hünemeier.
“Os indígenas são a população menos estudada do ponto de vista genético, então, precisamos fazer praticamente tudo desde o início”, pondera.
E, considerando as características da América do Sul, a genética talvez seja a mais poderosa ferramenta para reconstituir esse passado remoto.
“Na maioria das vezes, não encontramos registros por escrito, e o próprio clima dessa região dificulta a preservação de esqueletos de seres humanos ou animais”, complementa Castro e Silva.
“É claro que não andamos sozinhos e precisamos da antropologia, da arqueologia e da história, entre outras disciplinas”, acrescenta Hünemeier.
“Mas não há dúvidas de que estamos diante de um trabalho imenso, para o qual ainda temos mais perguntas do que respostas”, conclui.