Há 200 anos, em 15 de fevereiro de 1819, Simón Bolívar, exaltado como herói da independência por venezuelanos e colombianos de todos os matizes políticos, fez o seu famoso Discurso de Angostura, que leva o antigo nome do município de Ciudad Bolívar, no sudeste da Venezuela. “Moral e luzes são nossas primeiras necessidades”, disse Bolívar. A frase há anos estampa muros e cartazes das escolas da Venezuela, mas atualmente soa irônica, quase como uma piada de mau gosto diante da situação deplorável em que se encontra a população que há quase 20 anos sofre os desmandos de um projeto de poder que começou com um coronel golpista, Hugo Chávez, e continua com sua imitação mais barata, o ex-motorista de ônibus Nicolás Maduro.
Moral e luzes, sim. Mas pergunte aos venezuelanos sobre suas primeiras necessidades e eles dirão que precisam de comida e de remédios. As gôndolas dos supermercados estão vazias, a inflação é a maior do mundo e há crianças literalmente morrendo de fome em hospitais desprovidos de insumos básicos. Os venezuelanos, é claro, também carecem de liberdade, mas mesmo para se livrar da tirania chavista eles precisam conseguir se manter de pé. E o regime chavista provou, no fim de semana passado, que é capaz até de matar para impedir que o povo tenha o que comer. Por quanto tempo se estenderá o martírio venezuelano? O que a comunidade internacional, inclusive o Brasil, pode fazer a respeito?
Ajuda humanitária
Levada a cabo nos últimos dias 22, 23 e 24, a tentativa de enviar ajuda humanitária à Venezuela — na forma de caminhões carregados com alimentos e remédios que deveriam ter cruzado para o país vizinho através da fronteira brasileira, em Pacaraima (RR), e colombiana, em Cúcuta — tinha um objetivo triplo. O primeiro, e mais premente, era mitigar a fome e a falta de cuidados médicos de parte da população. O segundo era escancarar a situação que os venezuelanos enfrentam por causa da corrupção e das políticas calamitosas do regime de Maduro. O terceiro pretendia fortalecer Juan Guaidó, o deputado oposicionista que foi reconhecido por cerca de 50 nações, inclusive o Brasil, como presidente interino do País desde janeiro, quando Maduro iniciou um novo mandato ancorado em eleições fraudulentas. Guaidó foi à Colômbia para liderar a entrada dos caminhões de ajuda, e pretendia entrar triunfante na Venezuela, rompendo possíveis resistências das forças de segurança de Maduro. Mas as coisas não saíram como o esperado.
Versão fantasiosa
Maduro mandou fechar as fronteiras e destacou a Guarda Nacional Bolivariana (GNB) — além de milícias formadas por delinquentes e por integrantes do grupo narcoterrorista colombiano ELN — para usar a força contra a entrada dos caminhões. As milícias chavistas atiravam com munição real contra os voluntários venezuelanos que tentavam forçar a passagem dos caminhões, enquanto a GNB disparava balas de borracha e lançava bombas de gás lacrimogêneo. Quatro pessoas morreram nos confrontos na fronteira com o Brasil. O índio venezuelano Kliver Alfredo Perez Rivero, de 24 anos, que estava internado em estado grave em Boa Vista (RR), morreu na quarta-feira 27. Na sexta-feira 22, ele e outros integrantes de sua tribo haviam tentado manter uma passagem aberta na fronteira com o Brasil quando foram atacados pelas forças de Maduro.
O ditador venezuelano criou a versão fantasiosa de que a comida, enviada principalmente pelos Estados Unidos, estava envenenada e que a ajuda humanitária não passava de um cavalo de troia para derrubá-lo. Maduro sabe, porém, que não são sacos de arroz que vão tirá-lo do poder. Isso só ocorrerá quando o seu último sustentáculo ruir: o apoio da cúpula das Forças Armadas. O dos soldados e dos oficiais de baixa patente ele já perdeu. Em uma das pontes que separam a Colômbia da Venezuela, mulheres policiais das forças de Maduro choravam enquanto os voluntários pediam que elas deixassem a ajuda passar. Acabaram cedendo, mas as cargas foram incendiadas do lado venezuelano por milicianos. Ao longo da semana, mais de 400 militares venezuelanos desertaram, sete para o Brasil.
O inédito confronto na fronteira entre Brasil e Venezuela, que chegou a atingir em alguns metros o território brasileiro, foi recebido de maneiras díspares pelos militares e pela diplomacia brasileira. Os primeiros, por meio do Ministério da Defesa e das declarações do vice-presidente Hamilton Mourão, que é general da reserva, demonstraram comedimento. Já o Itamaraty, comandado pelo chanceler Ernesto Araújo, elevou o tom mais do que o necessário. Por sorte, o que tem prevalecido é a postura pacífica defendida por Mourão. Em encontro realizado na Colômbia por representantes de países empenhados em encontrar uma solução para a Venezuela — e que contou com a participação, entre outros, de Juan Guaidó, do presidente colombiano Iván Duque e do vice-presidente americano Mike Pence —, Mourão deixou claro que o Brasil está disposto a pressionar pela mudança de regime no país vizinho, mas que o protagonismo deve ser dos venezuelanos. Ou seja, a solução deve ser pacífica e não implicará em um participação militar do Brasil — nem mesmo indiretamente, permitindo o uso do território brasileiro como base para tropas americanas. Alguém falou em intervenção militar? De certa forma, sim. Na Colômbia, Pence disse que o presidente americano mantém “todas as cartas sobre a mesa” para forçar Maduro a apear do poder. O próprio Guaidó pediu que “todas as opções” para a liberação da Venezuela sejam consideradas.
Uma intervenção militar externa na Venezuela seria o pior dos cenários. Maduro encontraria nela a justificativa para sua narrativa de que há um complô imperialista contra ele. A legitimidade de Guaidó ficaria abalada. O alto comando militar venezuelano, cuja lealdade o ditador mantém a duras penas, se veria motivado a manter-se unido para fazer frente a uma invasão. Ainda que as Forças Armadas joguem a toalha e desistam de proteger Maduro, tudo indica que o país descambaria para um caos ainda maior, com milícias chavistas e outros grupos criminosos que lucram com o regime pegando em armas. A Venezuela poderia entrar em guerra civil.
O que resta, então, fazer? Em primeiro lugar, é preciso reconhecer que o impasse atual, de um país com dois presidentes, ainda pode se prolongar por muito tempo. Resta ao Brasil, em coordenação com os Estados Unidos, intensificar a pressão econômica e diplomática contra Maduro. Um passo importante foi dado pelo governo americano este ano, ao aplicar sanções unilaterais contra a exportação de petróleo venezuelano, que representa 90% da entrada de divisas do regime. “A situação só vai se resolver quando os militares se sentirem pressionados pela população a substituir Maduro”, diz Rubens Barbosa, ex-embaixador do Brasil em Washington. Na quinta-feira 28, Guaidó se encontrou com o presidente Jair Bolsonaro em Brasília. O brasileiro disse que não poupará esforços “para que a democracia seja restabelecida na Venezuela”. Bolsonaro assumiu a disposição de buscar ativamente a derrubada do governo de um país vizinho, algo estranho à tradição da diplomacia brasileira. Dado o impacto que a crise venezuelana tem sobre o Brasil, essa é uma decisão correta. Mas é preciso ter uma estratégia clara — e pacífica — para se atingir o objetivo.