Vanessa*, de 18 anos, foi uma dos 18 milhões de alunos brasileiros que participaram neste ano da primeira fase da Olimpíada Brasileira de Matemática das Escolas Públicas (OBMEP) neste ano. Mas, diferentemente da maioria dos outros concorrentes, ela não prestou a prova na escola.
A jovem fez o teste em uma sala com lousa e carteiras, mas que tem grades nas janelas pequenas e altas e uma porta que normalmente fica trancada a cadeado.
Também não usava uniforme de escola, mas chinelos e o conjunto cáqui obrigatório para crianças e adolescentes infratores internados na Fundação Casa, instituição em São Paulo, onde ela está há 5 meses.
Vanessa sempre gostou muito de matemática, mas como estava sem estudar há 2 anos quando foi internada, ela não imaginou que iria bem na prova.
Quando a professora deu “parabéns”, no mês seguinte, dizendo que ela tinha passado para a segunda fase da Olimpíada, superando milhares de alunos que não estavam privados de liberdade, ela achou que tinham confundido seu mês de aniversário.
“Eu não achei que ia passar. Para mim foi difícil, porque eu não lembrava muito das matérias.”
Aluna do 1º ano do Ensino Médio, Vanessa voltou a estudar dentro da Fundação Casa. Ela havia saído da escola em 2017, mas seus estudos foram interrompidos diversas vezes ao longo da vida — ela chegou a morar na rua e em abrigos algumas vezes.
Poucas visitas
Na Unidade Chiquinha Gonzaga, ela não recebe muitas visitas, o que é comum entre as 103 adolescentes internadas ali. Assim como nos presídios para mulheres adultas, as meninas internadas na Fundação Casa recebem menos visitas que os meninos.
Na pequena biblioteca da unidade, ela conta à BBC News Brasil que sua mãe morreu de câncer quando tinha 5 anos e seu pai foi preso por tráfico de drogas quando ela tinha 9.
Nos seis anos em que o pai ficou preso, ela chegou a morar com o irmão, mas os dois passavam “mais tempo na rua no que em casa”.
“Eu gostava de estudar, mas era difícil, com minha família. Meu irmão tem problema de cabeça, eu não tinha muito incentivo.”
Aos 12 anos, Vanessa começou a usar drogas e largou a escola. Depois saiu de casa. Chegou a morar em abrigos, tinha dificuldade em ficar, porque é proibido usar drogas nesses locais. Acabou indo viver na rua com outras crianças, no centro de São Paulo.
“Não passava fome, porque eu pedia. Mas a gente passa muito frio, e quando chove é muito difícil achar lugar para dormir.”
Voltou a estudar quando o pai saiu da prisão e pode voltar a morar com ele, na zona norte de São Paulo. Começou a fazer supletivo para chegar ao ensino médio. Mas viver com o pai não era fácil, diz Vanessa, e sua vida não demorou muito para sair dos trilhos de novo.
“Conheci um menino de abrigo e ele me chamou para ir ficar com ele no abrigo. Mas eu briguei com ele, os outros me chamaram para ir roubar, eu fui roubar e fui presa”, conta ela, que tinha 17 anos na época.
“Agora, eu tô vendo que a vida que eu tinha não era para mim. Que eu posso estudar, posso trabalhar. Que eu não preciso ficar na rua usando droga.”
Retorno às aulas
Usuária de várias drogas desde criança, teve fortes crises de abstinência nos primeiros meses internada, mas com o uso de remédios e o acompanhamento nos Centros de Atenção Psicossocial (CAPS), ela diz que as crises passaram.
Com isso, ela pôde retomar as aulas, dadas todos os dias de manhã no centro de detenção. À tarde tem outras atividades, como participação no coral.
O sucesso na primeira fase da Olimpíada não foi apenas uma surpresa, mas um incentivo para Vanessa continuar os estudos e fazer faculdade. Ela quer cursar engenharia civil ou assistência social.
“Como eu já passei em abrigo, acho muito bonito o trabalho que elas (as assistentes sociais) fazem. Eu lembro muito do tio Moacir, que quando eu estava triste conversava comigo, fazia de tudo para eu não sair do abrigo, para eu não ficar na rua.”
Agora, ela se prepara para a segunda fase — diz que adora resolver problemas como a fórmula de Bhaskara (usada para resolver equações do segundo grau, ela explica) — que será no dia 28 de setembro.
A Olimpíada foi criada em 2005 e seu objetivo é estimular o estudo da disciplina e identificar talentos na área, incentivando o ingresso de alunos na universidade nas áreas de ciência e tecnologia.
Só mais uma prova
A alguns quilômetros dali, na unidade masculina da Fundação Casa, a Rio Tâmisa, Aurélio* de 17 anos, também se prepara para a segunda fase da Olimpíada de Matemática.
Participam da competição alunos do 6º ano do Ensino Fundamental até último ano do Ensino Médio; 54.831 escolas participaram. A prova da 2º fase será em 28 de setembro. As melhores provas serão premiadas com medalhas de ouro, prata e bronze – centenas delas são distribuídas a cada ano.
A unidade em que Aurélio está internado se parece bem mais com uma prisão. Ele fez a prova da Olimpíada sem saber: achou que era só mais uma prova bimestral do 7º ano do Ensino Fundamental, que voltou a cursar desde que foi internado na instituição.
Aurélio trabalha desde os 15, como ajudante de pedreiro, e morava com quatro irmãos, a mãe e o padrasto na zona norte de São Paulo. Fazia supletivo à noite para tentar recuperar os anos de escola perdidos por falta, mas às vezes ficava muito cansado e acabava não conseguindo ir.
Desde os 10 sonhava em ter uma moto, diz, porque “gostava muito de adrenalina”. Mas nunca conseguiu comprar uma com seu salário, e admite que acabou não seguindo os conselhos da família que dizia para “se afastar das amizades ruins e procurar coisas melhores”.
“Eu tava com um amigo e a gente viu uma moto e fomos roubar. E aí estávamos quase chegando em casa quando apareceu a polícia”, admite. “Foi muito triste, minha mãe ficou arrasada.”
Como costuma acontecer com mais frequência para os meninos do que para as meninas, Aurélio recebe visitas frequentes da família – da mãe, da madrinha, do padrasto e do pai.
Ficou muito feliz ao descobrir que tinha passado para a segunda fase da Olimpíada e diz que isso é um grande incentivo para continuar a estudar. “A gente estava jogando dominó quando a professora veio e disse que eu tinha tido as três melhores notas da casa.”
Expectativas
Aurélio conta que quer fazer um curso profissionalizante quando sair da instituição. “Arrumar um emprego, construir alguma coisa para mim. Comprar uma moto que aí, sim, seja minha, né?.”
A surpresa com o bom resultado na Olimpíada de Matemática é um traço comum entre todos os seis adolescentes infratores que conversaram com a BBC News Brasil.
“Essa questão da autoestima é uma questão muito difícil e um ponto central a se trabalhar, porque muitas vezes eles não acham que são capazes de coisas boas”, diz Priscilla Iris Jerônimo, diretora da Casa Rio Tâmisa.
Aline*, de 17 anos, fez a prova com Vanessa, na Casa Chiquinha Gonzaga. Entre os alunos que brilharam na primeira fase, ela é quem tinha mais dificuldade na disciplina.
Mas é esforçada – além das aulas normais de manhã, faz aulas de reforço à tarde e foi a última a sair da sala no dia da prova. “Todo mundo saindo, e eu na metade ainda, mas eu não queria chutar”, diz ela, que havia deixado a escola no ano passado e retomou as aulas quando foi internada na instituição, em fevereiro deste ano.
“Na minha sala (na escola) ninguém ligava para escola, e eu acabei fazendo amizades erradas, eu mentia para minha mãe dizendo que estava na aula e não ia”, conta ela, que morava em uma comunidade com a família no interior de São Paulo.
Com sete irmãos e a mãe cuidando da irmã pequena, a renda da família era pouca. Aline percebeu que poderia ganhar algum dinheiro fazendo como as amigas que vendiam drogas na comunidade.
Erros e acertos
Aline ficou quase um ano fora de escola e fora de casa, morando com amigos – sua mãe não sabia onde ela estava. “Ela ficou desesperada atrás de mim.”
“Fui traficar e foi assim que eu caí aqui”, conta. “No começo não era ruim, quando você começa, conhece uma droga, você acha que é a popular da escola. Depois que eu vi que não era bem isso”, reflete.
“Antes eu falava para minha mãe que eu queria ter 17 anos para trabalhar e hoje eu tenho 17 anos e estou privada da minha liberdade.”
“Foi muito difícil, porque ninguém na minha família me ensinou essa vida errada. Mas também ninguém colocou uma arma na minha cabeça e me forçou, eu fui pela minha própria vontade. Depois eu percebi que eu errei, que essa vida não era para mim”, diz ela.
Durante a internação, começou a fazer diversos cursos profissionalizantes no Senac — como de garçonete e de atendimento telefônico — e pretende terminá-los quando sair.
Quando sair, diz ela, quer arrumar um primeiro emprego em uma lanchonete, para poder fazer faculdade de matemática. “E depois quero me tornar professora.”
Aline diz que está ansiosa para contar para a mãe que se classificou na Olimpíada. “Acho que ela vai ficar feliz, porque ela fala tanto por telefone, ‘filha, estuda, a mãe quer te ver no serviço, com uma vida boa, que essa vida não é para ninguém’.”
“Eu achava que minha mãe nunca ia me perdoar. Mas ela me perdoou.”
*Os nomes dos adolescentes foram alterados para preservar suas identidades