A teia de interesses e arranjos que move o governo Bolsonaro ficou exposta em meio à brigalhada que o presidente, pessoalmente, seus filhos e partidários armaram em público nos últimos dias – houve trocas de acusações, xingamentos e chantagens, que, em alguns momentos, beiraram a infantilidade de alunos de jardim de infância. De lado a lado, existiu de tudo. Gravações em situações no mínimo constrangedoras. Numa delas, o presidente Jair Bolsonaro foi pilhado em flagrante pedindo a um parlamentar do PSL que apoiasse o nome do filho à liderança do partido. Do contrário, tal parlamentar sentiria a vingança presidencial, puro estelionato: “Assina, senão é meu inimigo”.
Aos que assinaram, foram distribuídos cargos públicos e promessas de ganho de recursos do fundo partidário. Depois dessa operação, Bolsonaro foi chamado de “vagabundo” pelo correligionário Delegado Waldir, que ameaçou “implodir” o governo. No submundo dessas tramóias, surgiram ameaças, denúncias e demonstrações explícitas de que muitos podres restavam escondidos ou não estavam devidamente protegidos, vindo à tona em debates acalorados. Em determinado momento, a ex-líder do governo Joice Hasselmann, remetendo-se à clássica obra de Lois Duncan, “Eu sei o que vocês fizeram no verão passado”, consagrou a rinha: ela afirmou, letra por letra, saber o que “eles fizeram no verão passado”. A cabeça de Joice rolou, adeus cargo de líder.
Lua de mel com dinheiro público
ISTOÉ mergulhou nos últimos dias nos subterrâneos dessas disputas e negociatas bolsonaristas, ouviu diversos interlocutores, checou inúmeros dados e descobriu uma assombrosa malha de práticas criminosas que já levaram no Brasil, legal e legitimamente, à abertura de processos de impeachment do mais alto mandatário da Nação – e, a se fazer valer a Constituição, poderia também encaminhar o atual presidente para idêntico destino. São situações e práticas que ferem o decoro de forma clara. Nesse campo, estão em jogo no clã bolsonarista circunstâncias aterradoras, como o pagamento das passagens da lua de mel do deputado Eduardo com dinheiro público do fundo partidário – na quarta-feira 23, ele declarou que no partido as pessoas têm de ter lealdade ao seu pai, não lealdade ao fundo. Convenhamos que isso tem uma lógica torta, mas é lógica: Eduardo, ao lançar mão do dinheiro do povo para a lua de mel, exerceu a deslealdade. Mas tem mais: ISTOÉ descobriu a manutenção de uma poderosa rede de milicianos digitais operados diretamente pelo Planalto, promíscuo fato que joga na marginalidade a República brasileira, transformando-a em republiqueta de fundo de quintal. Ou, melhor: fazendo da República uma associação criminosa de milicianos. Há também a revelação de que até o carro blindado do deputado Eduardo é pago com os recursos públicos do fundo partidário e que ele teria feito “rachadinha” com os salários da advogada do PSL.
A história da advogada expõe cruamente as vísceras do modus operandi de uma república administrada por personagens pouco escrupulosos. Relatos obtidos por ISTOÉ dão conta de que a advogada em questão, Karina Kufa, contratada pelo partido a pedido de Eduardo Bolsonaro (PSL-SP), teria sido a responsável por acertar os detalhes da viagem de lua de mel do deputado. Eduardo se casou com Heloísa Wolf no dia 25 de maio, no Rio de Janeiro, com as despesas pagas por amigos, mas faltava comprar as passagens da viagem de núpcias rumo as paradisíacas Ilhas Maldivas. Falando em nome de Eduardo, a advogada teria ligado para Antonio Rueda, vice-presidente nacional do PSL, pedindo dinheiro do fundo partidário.
Rueda, ex-aliado do Messias e agora próximo ao deputado Luciano Bivar, presidente nacional da legenda, chegou a confidenciar: “Não agüento mais essa mulher me telefonando para pedir dinheiro para o Eduardo”. Mas acabou liberando a grana. As mesmas fontes, checadas com dois deputados do PSL ligados a Rueda, confirmaram a informação já citada acima de que até carro blindado de Eduardo é pago com o erário. Hoje, ele é o presidente estadual do PSL paulista, depois de pressionar o senador Major Olímpio a desistir do cargo, e atualmente domina o caixa da legenda em todo o Estado, incluindo os diretórios municipais. Na quarta-feira, Olímpio manifestou sua intenção de pedir a dissolução do diretório.
Karina Kufa, conforme parlamentares ouvidos por ISTOÉ, era conhecida defensora dos interesses de Eduardo dentro do partido. Ela recebia salário de R$ 40 mil mensais, também pagos com dinheiro do contribuinte, mas dividiria o valor com o deputado, na proporção de R$ 20 mil para cada um. Eduardo também ficaria com parte do dinheiro que a advogada recebia do PSL a título de consultorias extras. Em pouco mais de oito meses de contrato com o partido, ela recebeu R$ 340 mil. Desse total, cobrou R$ 100 mil por seu trabalho na defesa da senadora Selma Arruda, ameaçada de cassação de mandato (a senadora trocou o PSL pelo Podemos depois de uma briga com o senador Flávio Bolsonaro, que berrou com ela ao telefone).
A defesa não teria ficado boa, obrigando o partido a contratar o advogado Gustavo Bonin de Guedes para substituí-la. Em razão disso, o PSL está exigindo o dinheiro de volta. Como Kufa queria determinar como o partido usaria os recursos do fundo partidário, a pedido do presidente Bolsonaro – para quem também advoga -, Luciano Bivar decidiu demiti-la há 15 dias, em meio à guerra pelo poder no partido. O domínio de Eduardo no PSL paulista é replicado por Flávio Bolsonaro no PSL do Rio de Janeiro, onde ele também é presidente. Aliás, o desdém da família em relação à ética é extensivo aos três filhos. Carlos, porém, é o mais desbocado. Diante do anúncio de que a CPMI das Fakes News quer ouvi-lo, o vereador fez um comentário digno da conduta daqueles que operam nos porões: “Vamos falar umas verdades a esses porcarias”. Detalhe: “porcarias”, em sua visão, são deputados e senadores.
As chaves do cofre
Os Bolsonaro não se dão por satisfeitos com o domínio territorial que já conseguiram. Querem agora controlar todo o PSL nacional, dono de um fundo partidário de R$ 150 milhões anuais e de um fundo eleitoral estimado em R$ 500 milhões para os pleitos de 2020 e de 2022, quando o “Mito” pretende ser candidato à reeleição. Na estratégia de “tomar o partido na mão grande”, nas palavras do deputado Delegado Waldir ditas à ISTOÉ, Bolsonaro decidiu que deveria afastar o deputado Luciano Bivar da presidência nacional. “Primeiro, disse que ele estava queimado para caramba e uma semana depois autorizou uma operação da PF em sua casa para desgastá-lo publicamente.
A operação teve como justificativa a investigação sobre o laranjal de Pernambuco, mas estranhamente não faz o mesmo com o ministro do Turismo, Álvaro Antônio, em Minas Gerais”, diz Waldir. Ainda segundo ele, os policiais “reviraram até as calcinhas da esposa do Bivar em busca de provas e nada encontraram. Foi apenas um circo”. O deputado entende que deveria haver uma investigação no Congresso para colocar a limpo o envolvimento do presidente na operação policial. “Foi uma ação abusiva por parte de Bolsonaro”, afirma ele. Waldir tem claro que o presidente quer “tão somente a chave do cofre” do partido. Membros da Executiva do PSL não acreditam que Bolsonaro terá sucesso em afastar Bivar da sigla.
Compra de cargos
Dando sequência ao projeto de tomar o PSL de assalto, o capitão reformado deu início ao processo de substituir os líderes na Câmara e no Congresso, que demonstravam estar alinhados a Bivar. O primeiro a ser fustigado foi o próprio Waldir. Ele, por exemplo, ficou contra a mudança do Coaf, defendeu a criação das CPIs da Lava Toga e Fake News, apoiou as medidas anticrime de Sergio Moro e a prisão após a segunda instância, contrariando o presidente. Dançou. O Planalto articulou para colocar Eduardo no cargo. Bolsonaro foi gravado por um correligionário dizendo: “quem ficar com a gente vai ter cargos no governo” – dá para lembrar Getúlio Vargas quando pregrava “aos amigos tudo, aos inimigos a lei”. Waldir perdeu, de fato, o posto para Eduardo. Waldir disse à ISTOÉ que o presidente autorizara o deputado Major Vitor Hugo e o ministro da Secretaria de Governo, general Luiz Eduardo Ramos, a oferecerem cargos e dinheiro do fundo partidário a parlamentares do PSL que apoiassem Eduardo.
A farra por cargos na atual gestão atingiu um ponto tão descarado que até o ex-motorista do senador Flávio Bolsonaro, Fabrício Queiroz, saiu de seu esconderijo para gravar um áudio divulgado por grupos de Whatasapp, no qual indica que continua influente na divisão de empregos públicos, com direito à “rachadinhas”. “Tem mais de 500 cargos lá, cara, na Câmara, no Senado… Pode indicar para qualquer comissão, alguma coisa, sem vincular a eles (família Bolsonaro) em nada. Vinte continho pra gente caía bem pra c…”. E mais adiante insinua que Flávio continua distribuindo cargos. “Pô, cara, o gabinete do Flávio faz fila de deputados pra conversar com ele. Faz fila. É só chegar, meu irmão: nomeia fulano aí, para trabalhar contigo. Salariozinho bom desse aí, cara, pra gente que é pai de família, p…, cai como uma uva”, diz um debochado Queiroz, que desviou R$ 1,2 milhão dos funcionários do gabinete de Flávio quando ele era deputado estadual no Rio de Janeiro. A dupla está sendo investigada pelo MP, mas o STF de Dias Toffoli mandou suspender as apurações, no que é chamado no Congresso de “acordão” com o presidente.
Configurada a derrota do Delegado Waldir, ele adotou o discurso de oposição: “Isso caracteriza um desrespeito à Constituição. O Executivo não pode interferir no Legislativo”. Waldir entende que da compra de votos pode até decorrer o impeachment, “mas isso quem pode analisar são entidades como a OAB”. Waldir até foi pego numa gravação chamando Bolsonaro de “vagabundo”: “Sempre fui fiel a ele. Quando foi candidato a presidente da Câmara, teve quatro votos. Um deles foi meu. Por isso, confirmo: chamei mesmo de vagabundo”. A rasteira que lhe foi dada por Eduardo trouxe ótimas conseqüências à diplomacia brasileira: após ter se tornado líder na Câmara, Eduardo desistiu de ser indicado pelo pai para a Embaixada em Washington. “Preciso ficar aqui para construir um Brasil conservador”, discursou Eduardo (Edmund Burke revirou no túmulo). O presidente já indicou para a embaixada o nome de Nestor Forster, ligado ao filósofo Olavo de Carvalho. Engana-se, porém, quem acha que a situação está resolvida. “Eduardo não tem condições de pacificar o PSL. Se houver uma eleição secreta para a liderança, ele perde”, disse o senador Major Olímpio (PSL-SP), líder da sigla no Senado.
Milicianos
Joice Hasselmann, quando está calma, parece furiosa; quando se enfurece, vira um tsunami. Alijada da liderança, ela afirmou ter sido retirada do cargo pelo simples fato de ter assinado a lista em favor do Delegado Waldir, em detrimento de Eduardo, e sentiu-se “traída”. Foi execrada publicamente pelos filhos do presidente, e Eduardo foi o primeiro a detoná-la com a divulgação de um post em que colocava o rosto da deputada em uma nota de R$ 3 – querendo dizer que ela é falsa. Em um dos memes, ela aparece obesa, com mais de 200 quilos, de forma chocante. Eduardo fez também posts relacionando-a a uma porca e uma vaca – como se vê, ele é de um cavalheirismo incrível. Ela contra-atacou: refereriu-se aos filhos como “moleques” e usando imagens de “viadinhos”, mas depois se arrependeu e apagou a postagem. Joice investigou de onde partiam os memes, e descobriu que os três filhos do presidente usam assessores parlamentares, “pagos com dinheiro público”, que agem como “milicianos digitais” para alimentar pelo menos 21 perfis no Instagram, 1.500 páginas no Facebook e centenas de contas no Twitter. De acordo com ela, a maioria é de perfis falsos que utilizam fake news para atacar quem ideologicamente não concorda com o bolsonarismo (leia entrevista com a deputada aqui).
ISTOÉ descobriu que essa quadrilha digital é integrada por diversos membros, espalha-se pelo País e o seu chefão atende pelo nome de Dudu Guimarães – ele é assessor parlamentar… adivinha de quem… de Eduardo. Dudu é o responsável pelo falso perfil Snapnaro, e há outros perfis, igualmente falsos, comandados pelos Bolsonaros – como Bolsofeios, Bolsonéas e Pavão Misterioso. Joice conta que um esquema similar é mantido pelos filhos numa sala instalada no quarto andar do Palácio do Planalto, conhecida como “gabinete do ódio” ou “gabinete das maldades”. Esse grupo, coordenado pelo vereador Carlos Bolsonaro e pelo assessor internacional da Presidência do Brasil, Filipe Martins, é composto por três funcionários públicos que operam na criação de notícias favoráveis ao presidente, mas também produzem fake news e dossiês contra desafetos, estejam eles dentro ou fora do governo. Isso aconteceu com o vice-presidente Hamilton Mourão e o ex-ministro Santos Cruz. Esses assessores têm nome e sobrenome: Tércio Arnaud Tomaz, José Mateus Salles Gomes e Mateus Matos.
Depois que passou a denunciar os filhos do presidente, Joice sente medo de ser alvo de pesadas represálias e, por isso, passou a “morar” na casa de uma amiga que lhe ofereceu segurança privada. Outros deputados do PSL, que desafiaram Eduardo, como Junior Bozela (PSL-SP), também temem pela própria vida. Bozela afirma que funcionários do gabinete de Eduardo ameaçaram-no de morte. Ele chegou a registrar boletim de ocorrência na Polícia Legislativa e denunciou à ISTOÉ: “Eduardo usa como seguranças pessoais policiais ligados à milícia carioca”. Agora ficou bastante claro o que a deputada quis dizer quando sabia o “que eles fizeram no verão passado”.