Oito em cada dez pacientes apresentam disfunções cognitivas

Pacientes tiveram lapsos de memória, falhas de atenção e sonolência mesmo em casos leves e assintomáticos da covid-19

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Paciente com coronavírus no Hospital Nossa Senhora da Conceição, Porto Alegre 19/11/2020 REUTERS/Diego Vara

A memória era uma aliada da produtora Ivana Sarmanho, de 55 anos. Sabia datas de aniversário, o lado e a faixa exata de uma música em um disco de vinil. Mas isso mudou após a covid-19. Episódios de esquecimento e alterações no sono começaram a fazer parte do seu dia a dia. Ela foi uma das participantes de um estudo realizado no Instituto do Coração (InCor) do Hospital das Clínicas da Faculdade de Medicina da Universidade de São Paulo (HCFMUSP) que apontou a relação entre a infecção pelo vírus e disfunções cognitivas. De acordo com a pesquisa, 80% dos participantes apresentaram perda de memória, dificuldade de concentração, problemas de compreensão ou confusão em algum nível.

O trabalho foi conduzido pela neuropsicóloga Lívia Stocco Sanches Valentin, que também é professora da FMUSP, que resolveu investigar os impactos da covid-19 na parte cognitiva. “Sou especialista em anestesiologia e, com a infecção, tem a invasão das vias aéreas, que causa dessaturação de oxigênio, o que, fatalmente, vai afetar o sistema nervoso central. O sangue vai chegar rarefeito no cérebro, que vai ficar comprometido, causando tanto AVC e isquemia, quanto atingindo as funções neuropsicológicas.”

Na primeira fase, foram analisados 185 pacientes entre março e setembro do ano passado, que tiveram os resultados comparados com um grupo de controle. Atualmente, há 430 pessoas e o InCor ainda aceita voluntários.

Para o estudo, foi usada uma ferramenta desenvolvida por Lívia em 2010, chamada MentalPlus, um game criado para avaliar as disfunções neurológicas em pacientes com sequelas de anestesia geral profunda, principalmente idosos.

“Como já usava o MentalPlus, abri mais um protocolo de pesquisa para avaliar as funções cognitivas na covid e vimos o estrago. Quando a gente diz que são recuperados, os pacientes não entendem que é algo maior. Até fala que saiu ileso, mas não por completo, porque permanece o cansaço, a tosse, a dor de cabeça ou a questão cognitiva, mesmo que leve. Tem a falha de memória, a pessoa se confunde em tarefas simples e acaba justificando essas falhas com outras coisas do dia a dia: preocupações financeiras, muito tempo em quarentena, por não viajar. As pessoas não entendem que a disfunção cognitiva é o quadro mais grave que é deixado como sequela.”

Segundo o estudo, a memória de curto prazo de 62,7% dos participantes foi afetada. Já a de longo prazo, teve alterações em 26,8% dos voluntários. Em relação à percepção visual, o impacto foi notado em 92,4%.

Além de apresentar os danos causados pela doença, o aplicativo também funciona no tratamento dos pacientes. “Quem tem disfunção, passa por reabilitação com o mesmo teste e passa a ser reabilitado com dez sessões. Vai jogar em fases diferentes e, na 12ª etapa, é reavaliado e para ver se conseguiu se reabilitar totalmente ou não. Alguns não se reabilitam totalmente e vão para a terceira fase, que é com eletroestimulação.”

A pesquisadora explica que a ferramenta foi validada em 2014 para uso no Brasil e nos demais países do mundo, e que ela já foi aplicada nos cinco continentes. Para casos pós-covid, pode ser usada com pacientes entre 8 e 88 anos. A meta é apresentar os resultados finais do estudo para a Organização Mundial da Saúde (OMS) para que a metodologia seja usada no diagnóstico e tratamento de pacientes com disfunções cognitivas.

“Estamos superando os 400 voluntários e fomos incentivados a continuar para ajudar nessa questão de saúde pública, porque precisamos saber o que fazer no pós-covid. No Brasil e no mundo, é um estudo pioneiro pensando no pós-covid.”

Voluntária se surpreendeu ao não conseguir ter êxito no jogo

Ivana teve covid-19 em maio, teve sintomas leves, tosse espaçada e febre baixa, mas já resolveu acionar a médica que a acompanha, pois tem pré-hipertensão.

“Ela sugeriu que eu fizesse o exame em um domingo. Quando voltei do PCR, fui almoçar e cadê olfato e paladar? Já tive certeza que era covid.” A produtora teve uma boa evolução, no entanto, percebia que algo não ia bem.

“Já tinha prestado atenção que minha memória não estava como era. Sei a data de aniversário das pessoas, faço muitas associações. Sou muito ligada em música, gosto muito de vinil, mas comecei a ouvir músicas da minha playlist e já não sabia quem estava cantando.”

Dois meses depois da infecção, soube do estudo do InCor por um amigo e resolveu participar. “Participei do estudo da vacina da dengue, estou sempre de braços dados com a ciência. Eles me colocaram um app, tipo um game, mas confesso que, quando fiz, senti algo diferente. Achei que as coisas estavam difíceis. Eu jogo videogame e me sinto à vontade jogando. Percebi que meus reflexos estavam lentos, minhas respostas estavam lentas.”

Com a reabilitação, ela já sentiu melhora. “O cérebro é plástico. Estou melhor, mas tenho um caminho a percorrer, assim como tem a reabilitação física, tenho de ter estímulos. Fico brincando de ver se me lembro das coisas e leio bastante.”

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