Desde que viralizou na internet, Alice Secco, de apenas dois anos, virou uma celebridade nas redes sociais. Nos vídeos publicados pela mãe, Morgana, Alice aparece falando palavras difíceis com uma pronúncia muitas vezes impecável — o vocabulário é complexo e inclui palavras como ‘paralelepípedos’, ‘ornitorrinco’ e ‘hipoteticamente’.
Com o sucesso no YouTube, veio um contrato publicitário com o Itaú, o que deixou Alice ainda mais conhecida. Ela estrelou uma campanha de fim de ano do banco, em que aparece com a atriz Fernanda Montenegro, desejando votos de dias melhores para o ano novo. Na sequência, aconteceu o óbvio em se tratando de internet — as imagens do comercial passaram a ilustrar memes, com um grande escopo de tipo de mensagens difundidas. Diante da segunda onda de viralização de Alice, um debate já visto na internet brasileira também retornou: a imagem de uma criança pode ser usada na fabricação de memes?
A resposta não é simples, especialmente após os memes terem surgido como paródia de uma propaganda de banco. A primeira pista do problema está nas palavras da mãe de Alice. Na última semana, Morgana expressou preocupação, no Instagram, com o fato da pequena ter se tornado alvo de brincadeiras e piadas — muitas vezes de cunho político e religioso. Segundo ela, a família não concedeu autorização para que a imagem fosse replicada em quaisquer instâncias além do uso pelas empresas com as quais Alice tem contrato comercial. A reportagem tentou contato com Morgana, mas não obteve resposta.
“Faz uns dois três dias que estou recebendo muitos memes com a imagem da Alice. Eu queria deixar claro que a gente não deu autorização pra nenhum deles e a gente não concorda em associar a imagem da Alice com fins políticos ou religiosos, por exemplo. Além disso, a gente não autorizou nem o uso dela com imagem de empresas ou de instituições, então a gente também não autoriza campanhas, divulgações, vendas de produtos, associação com marcas”, afirmou a mãe de Alice no último dia 6, pela rede social.
Além dos memes, a imagem viral de Alice tem sido utilizada por empresas e até órgãos públicos em publicações sobre serviços oferecidos. No Paraná, o ex-chefe da Casa Civil, Guto Silva (PSD), foi um dos que usou a imagem para chamar atenção da população para o Procon. O vereador Rodrigo Guedes (PSC), de Manaus, também compartilhou um meme da bebê Alice para criticar as decisões governamentais da capital do Amazonas.
Proteção pela lei
Segundo especialistas, a situação pode ser tratada tanto sob o ângulo do Estatuto da Criança e do Adolescente (ECA) quanto da Lei Geral de Proteção de Dados (LGPD).
Segundo o ECA, menores de 18 anos só podem ter suas imagens utilizadas com autorização dos pais ou dos responsáveis legais. A condição está prevista no art. 17 do Estatuto: “O direito ao respeito consiste na inviolabilidade da integridade física, psíquica e moral da criança e do adolescente, abrangendo a preservação da imagem, da identidade, da autonomia, dos valores, idéias e crenças, dos espaços e objetos pessoais”.
Ainda assim, a lei não versa totalmente sobre alguns casos digitais, como é o caso das crianças que se tornam figuras midiáticas — seja por campanhas publicitárias, atuação na mídia ou quaisquer outras atividades em que haja uma autorização para a exposição de um menor. Nesse caso, Marina Meira, Coordenadora Geral de Projetos da Associação Data Privacy Brasil de Pesquisa, acredita que deve se seguir o princípio da ‘responsabilidade compartilhada’, onde pais e sociedade entram em acordo sobre o que deve ou não ser associado à imagem da criança.
Do ponto de vista da LGPD, estamos diante de um dado bastante sensível: a foto de uma criança. “A LGPD reforça a proteção à imagem de crianças e adolescentes, que são pessoas em fase peculiar de desenvolvimento e, portanto, merecem prioridade absoluta na promoção e proteção de seus direitos. A LGPD aponta que o tratamento de dados pessoais de crianças e adolescentes somente poderá acontecer no seu melhor interesse. Isso significa, por exemplo, que o uso de fotografias de uma criança para fins estranhos a sua proteção ou para fins que possam em alguma medida acarretar danos a sua formação, a sua honra ou a seus direitos, de modo geral, será ilegal”, explica Marina.
Para muitos que estavam compartilhando o material, o fato de sua origem ser de um anúncio de TV, pelo qual a família ganhou dinheiro, retirava proteções e direitos de Alice — mas não é bem assim. Segundo Paulo Rená, professor de Direito no Centro Universitário de Brasília (UniCEUB), apesar de não ser possível escolher quem vai usar a imagem nas redes sociais, o direito jurídico reserva à família proteger a criança da exposição indevida mesmo que a escolha de veicular uma campanha, como foi no caso de Alice, por exemplo, tenha sido dos próprios pais.
“Acho que a mãe tem razão em postular alguma reserva, algum cuidado e limites para a imagem da criança. O direito tem as suas restrições. Ele não vai conseguir impedir a tecnologia de funcionar, mas ele pode estabelecer o que é certo e o que é errado”, afirma Rená.
Pisando no freio
Embora conte com camadas de proteção, frear a internet não é tarefa fácil — e nem sempre parece ser a solução ideal. “Não é porque a imagem caiu na rede que ela perde os direitos que estão à mesma atrelados. Mas é importante perceber que o direito à imagem não é um direito absoluto. Ele convive com outros direitos, como a liberdade de expressão”, diz Carlos Affonso Souza, professor do Instituto de Tecnologia e Sociedade do Rio de Janeiro (ITS-RIO). Para ele, a questão mais grave é o prejuízo da criança durante o crescimento, quando Alice perceber o que aconteceu.
A história da internet brasileira está recheada de casos em que crianças viraram memes — e sofreram com isso. Um deles é o da menina Lara da Silva, que tinha 12 anos quando viralizou em uma briga com uma colega de escola. No vídeo de 2015, a frase “já acabou, Jéssica”, saiu das ruas de Alto Jequitibá, Minas Gerais, e foi diretamente para os memes da web.
No ano passado, Lara afirmou que piada foi motivo de terapia, tratamento psiquiatrico e viagens a uma cidade vizinha para ter acompanhamento médico após tentativa de suicídio, segundo uma reportagem da BBC Brasil.
Hoje, com 18 anos, a jovem processa o Google, Facebook e algumas emissoras de TV que utilizaram o meme, como SBT, Record e Band. Até o momento, Lara — em conjunto com Jéssica, a outra personagem do vídeo da briga — tiveram ganho de causa em duas das seis ações que tramitam na justiça.
Três anos antes, o garoto Nissim Ourfali, com 13 anos na época, viu seu rosto estampado em todas as redes sociais após um vídeo da sua cerimônia de Bar Mitzvah se popularizar.
Depois da exposição, a família de Ourfali entrou na Justiça para que o Google retirasse o vídeo do ar — mesmo que fosse impossível controlar as réplicas já feitas da peça. Em 2016, dois anos após o início do processo, a controladora do YouTube perdeu a causa e teve que retirar o conteúdo da plataforma.
“No Brasil já tivemos situações semelhantes em que pessoas que se sentiram prejudicadas com imagens viralizadas buscaram que o Poder Judiciário obrigasse grandes plataformas a monitorar e filtrar esses conteúdos”, explica Souza. Nos dois casos, estava claro que os direitos dos menores se sobrepunham à liberdade de expressão, mesmo que controlar a internet seja uma tarefa bastante difícil de ser realizada.
Situação atual
Para a mãe de Alice, medidas judiciais podem ser um caminho, embora nenhum sinal de acionamento jurídico tenha partido da família até o momento.
“Tratando-se de crianças e adolescentes, é importante ressaltar que são pessoas em fase de desenvolvimento físico, psíquico e social. Isso faz com que recebam proteção integral e especial por parte da Constituição Federal e das leis brasileiras, afinal, sua personalidade está em formação e deve haver espaço para que experimentem, errem e se desenvolvam livremente”, pontua Marina.
Antes de qualquer disputa judicial e discussões sobre direitos e deveres, a mãe de Alice pede algo que parece em falta na internet há bastante tempo: bom senso.
“A maioria [dos memes] são inocentes e até engraçados. Mas alguns deles não são. Eu vim aqui pedir pra vocês bom senso na hora de postar. Se estiver em alguma dessas situações que eu mencionei, por favor, não postem. Se vocês verem posts com esse tipo de conotação, por favor, peçam para a pessoa excluir, porque é muita gente postando e óbvio que eu não consigo pedir para todo mundo excluir”, disse Morgana pelo Instagram.