A brutal história japonesa que inspirou a série ‘Xógun: A Gloriosa Saga do Japão’

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Existe um momento de revirar o estômago no episódio de estreia da nova série de TV Xógun: A Gloriosa Saga do Japão que certamente define o padrão de brutalidade que virá em seguida.

Depois de suportarem a fome, o escorbuto e o suicídio do capitão a bordo de um navio mercante holandês destruído, o piloto – o major John Blackthorne (interpretado pelo ator Cosmo Jarvis) – naufraga com os sobreviventes da sua tripulação, perto do litoral de Anjiro.

Lá, captores armados de espadas lançam os náufragos em um fosso, onde eles aguardarão o seu destino.

Blackthorne consegue evitar sua execução, mas um membro da sua equipe não tem a mesma sorte. Ele é amarrado e colocado em um caldeirão, onde é cozido lentamente até a morte.

Não, eles não estão em Westeros, por mais que as críticas favoráveis recebidas pela série comparem Xógun: A Gloriosa Saga do Japão com Game of Thrones. Trata-se do Japão do ano 1600, uma época de grandes distúrbios, depois de dois séculos de guerras civis.

Aqui, Blackthorne – inspirado no navegador real William Adams (1564-1620), o primeiro inglês a chegar ao Japão – precisa se integrar a uma realidade estrangeira brutal, enquanto o instável governo dos cinco regentes ameaça se dividir em facções beligerantes após a morte do Taikō, o regente imperial aposentado.

Missionários católicos aumentam o antagonismo contra Blackthorne, que é protestante. E sua sobrevivência pode depender de uma aliança com Lorde Yoshii Toranaga (Hiroyuki Sanada), que, aparentemente, também foi marcado para morrer pelos políticos rivais.

Originalmente um best-seller de fama mundial (a ficção histórica de James Clavell, publicada em 1975, atingiu 15 milhões de cópias em 1990), Xógun: A Gloriosa Saga do Japão já demonstrou seu potencial para a televisão anos atrás.

Em 1980, a minissérie original da TV americana NBC, estrelando Richard Chamberlain, John Rhys-Davies, o ícone japonês Toshirō Mifune e Orson Welles como narrador, atingiu a segunda maior audiência da história da TV americana. Ela ganhou três prêmios Emmy, três Globos de Ouro e sua popularidade contribuiu para o crescimento dos restaurantes de sushi verificado naquela década, nos Estados Unidos.

Em 2024, a nova série criada por Rachel Kondo e Justin Marks praticamente ignora os grandes atores, mas traz um contexto histórico ainda mais intenso, oferecendo uma rica ilustração do Japão feudal em toda a sua glória e terror.

Em 1600, a dinâmica de poder mundial era muito diferente de hoje em dia.

Em 1588, a Inglaterra protestante foi forçada a defender o trono da rainha Elizabeth 1ª (1533-1603) contra uma tentativa de invasão do país. Naquele ano, a marinha espanhola tentou restabelecer o catolicismo e pôr fim ao apoio inglês à independência holandesa da Espanha.

Na época, a Espanha vivia em união dinástica com Portugal. O Tratado de Tordesilhas já havia dividido os domínios oceânicos fora da Europa entre os dois poderosos Estados ibéricos, em 1494.

Portugal, na vanguarda da exploração global, descobriu o Japão em 1543 e começou a comercializar produtos ocidentais com os japoneses, como armas de fogo (mosquetes). Ao mesmo tempo, o país europeu também difundia a fé católica no Japão, enviando missionários jesuítas.

Todo este contexto compõe o cenário da traiçoeira viagem de Blackthorne, logo na abertura de Xógun: A Gloriosa Saga do Japão.

“Os portugueses (e os espanhóis) tinham dois objetivos”, explica o professor de história e estudos do leste asiático Thomas D. Conlan, da Universidade de Princeton, nos Estados Unidos. “O primeiro era converter o Japão ao cristianismo. O segundo era, finalmente, conquistar o Japão, convertendo lordes de alto escalão ao cristianismo.”

Conlan é autor do livro Samurai and the Warrior Culture of Japan, 471-1877: A Sourcebook (“Os samurais e a cultura guerreira do Japão, 471-1877: livro de referência”, em tradução livre).

“Mas os portugueses precisavam agir com cuidado”, prossegue o professor. “Militarmente, eles simplesmente não podiam competir com o poderio japonês.”

De fato, esses cuidados foram registrados já em 1552, por um dos primeiros visitantes ocidentais ao Japão.

“Eles são muito educados uns com os outros, mas não com os estrangeiros, que desprezam totalmente”, escreveu o missionário católico São Francisco Xavier (1506-1552), sobre a população japonesa em carta para a Companhia de Jesus na Europa. “Em suma, eles são um povo muito guerreiro e engajados em guerras contínuas entre si.”

‘Tempos brutais’

Naquela época, o Japão estava em meio a uma longa e caótica convulsão. Daí surgiram as tensões que parecem prontas para explodir em Xógun.

A era conhecida como o “Período dos Estados Beligerantes” (Sengoku Jidai, em japonês – c. 1461-1615) foi marcada por guerras civis quase constantes. Os senhores feudais lutavam pelo controle total do país.

Os objetivos de três senhores da guerra consecutivos – incluindo Toyotomi Hideyoshi, o recentemente falecido Taikō da narrativa de Xógun, e seu eventual sucessor, Tokugawa Ieyasu – seria atingido com a unificação do país no início dos anos 1600, mas não sem considerável força e violência nas mãos da classe dos bushi (os guerreiros samurais).

Cena de Cosmo Jarvis (esq.) interpretando o major John Blackthorne

O samurai com sua espada, de fato, respeitava um rigoroso código moral sobre os ideais do guerreiro cultivado.

Danny Chaplin, autor de Sengoku Jidai – Nobunaga, Hideyoshi and Ieyasu: Three Unifiers of Japan (“O período dos Estados beligerantes – Nobunaga, Hideyoshi e Ieyasu: os três unificadores do Japão”, em tradução livre), explica que as crenças dos samurais vinham de diversas tradições religiosas:

“Do budismo, o samurai aprendia a não temer a morte, já que a personalidade, de qualquer forma, era uma ilusão. Do xintoísmo, o samurai aprendia a reverenciar seus ancestrais, o que lhe conferia um profundo senso de lealdade e continuidade. Do confucionismo, ele aprendia os rudimentos do comportamento ante os demais, dentro de uma sociedade rigorosamente hierárquica.”

Mas, apesar dessas virtudes, os samurais também eram implacáveis na manutenção da ordem.

Para preservar a honra, por exemplo, era permitido ao samurai reagir imediatamente à percepção de um golpe por um membro das classes inferiores: kiri-sute gomen, a “autorização para cortar e deixar” [o corpo do rival]. Este costume é demonstrado logo no início da nova série, quando um camponês perde a cabeça na rua, figurativa e literalmente.

A lealdade ao seu líder também era um valor fundamental dos samurais. Morrer em serviço era considerado uma honra – e cair nas mãos do inimigo, ou sucumbir a um destino vergonhoso, era considerado uma desgraça.

Esses ideais chegaram até a era moderna, com os pilotos kamikaze da Segunda Guerra Mundial. E foram incorporados no ato de seppuku, ou suicídio por remoção dos próprios órgãos internos.

Este ritual é sugerido em Xógun: A Gloriosa Saga do Japão por Kashigi Yabushige (Tadanobu Asano), quando ele saca sua espada depois de cair no oceano, enfrentando uma morte vergonhosa por afogamento.

“Eram tempos violentos”, segundo Danny Chaplin. As espadas katana eram frequentemente “testadas” em prisioneiros condenados e a conquista de milhares de cabeças como troféus durante as batalhas “era uma prática comum dos samurais”.

Outro incidente famoso de 1597 é retratado na chegada da tripulação de Blackthorne ao Japão em Xógun: A Gloriosa Saga do Japão.

Quando o piloto de um galeão naufragado indicou que os espanhóis pretendiam conquistar o Japão enviando missionários para se infiltrarem no país, o Taikō quis deixar um exemplo como aviso. Hideyoshi então crucificou 26 cristãos e os empalou com lanças.

Da mesma forma que os Tudor ingleses decapitavam as viúvas e queimavam católicos na fogueira, os japoneses usavam métodos cruéis como aquele praticado com o infeliz companheiro de Blackthorne na série. O lendário bandido Ishikawa Goemon – uma espécie de Robin Hood japonês – foi cozido vivo nas margens do rio Kamo, em Kyoto, em 1594.

Cena da série Shōgun

“A violência como punição pretendia ser um espetáculo aterrorizante, para garantir o respeito às leis”, explica Thomas D. Conlan.

O próprio seppuku, muitas vezes considerado um “privilégio” para os samurais vencidos em batalha, também era escolhido como método de punição capital. Afinal, era menos provável que a família da vítima buscasse vingança por uma morte autoinfligida. Este método talvez tipificasse esse espetáculo mais do que qualquer outra coisa.

Em um incidente famoso, o Taikō chegou a ordenar que seu sobrinho já exilado morresse por suicídio em 1595, para evitar um possível questionamento sobre a sucessão do seu herdeiro.

Hideyoshi também executou toda a sua família, totalizando 39 homens, mulheres e crianças. Este tipo de crueldade colaborou para a percepção dos japoneses pelo Ocidente.

“Os europeus ficaram chocados ao saber que Hideyoshi faria isso com parentes próximos”, segundo Conlan.

O período Sengoku atingiria o ápice com a batalha de Sekigahara, em 1600 – a maior e, sem dúvida, mais importante do Japão feudal. Ela deixou até 36 mil pessoas mortas ou seriamente feridas em um único dia. Na série Xógun: A Gloriosa Saga do Japão, este evento parece pairar no horizonte.

Depois da batalha, o Japão entraria em uma nova era, chamada Edo, definida por mais de 250 anos de relativa paz, uma política externa isolacionista (para remover as influências coloniais e religiosas da Espanha e de Portugal) e pela proibição e perseguição aos cristãos.

Com um pouco de sorte, Blackthorne poderá chegar a viver nesse período. O certo é que ele terá que enfrentar muitos horrores para chegar lá.

A série Xógun: A Gloriosa Saga do Japão está disponível no Brasil no Star+ e na Disney+.