Com pandemia, cai pela metade número de adoções de crianças no Brasil no 1º semestre

São 731 adoções concretizadas de janeiro a junho deste ano, contra 1.423 no mesmo período do ano passado. Processos em papel e paralisados, menos acolhimentos e isolamento social impulsionaram a queda. Grupos de apoio em parceria com o Judiciário têm feito cursos online de preparação de pretendentes em alguns estados.

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O número de adoções de crianças e adolescentes no Brasil no 1º semestre deste ano caiu pela metade em meio à pandemia do novo coronavírus. É o que mostram dados do Sistema Nacional de Adoção e Acolhimento obtidos com exclusividade pelo G1.

Foram realizadas 731 adoções de janeiro a junho, contra 1.423 no mesmo período do ano passado – uma queda de 49%. O número de processos concretizados até cresceu em janeiro, antes de o novo coronavírus chegar ao país, mas a queda nos meses seguintes foi substancial.

A presidente da Associação Nacional dos Grupos de Apoio à Adoção (Angaad), Sara Vargas, diz que no começo da pandemia houve um esforço para que adoções possíveis fossem feitas de forma mais célere.

“Mas logo depois o Judiciário parou. E continuou só para questões emergenciais. Na maior parte do país, os processos de infância e juventude não são eletrônicos ainda, o que dificultou muito a situação”, afirma.
 

Ela ressalta ainda que a falta de varas exclusivas de Infância e Juventude no território nacional também foi determinante para uma queda nas adoções. “As varas que não são únicas colocaram os casos criminais na frente, com seus prazos mais rígidos, infelizmente.”

“A própria rede de proteção não conseguiu continuar trabalhando da forma ideal. A maioria das denúncias de maus-tratos e abusos contra crianças parte da escola ou dos hospitais. E as crianças deixaram de ir para a escola. Então houve menos casos de acolhimento. É todo um ciclo. Menos crianças, um processo mais lento… E as famílias querendo se habilitar passaram a ter mais dificuldade. A maioria dos lugares não conseguiu fazer as entrevistas psicossociais. Muitos não conseguiram fazer o curso preparatório de postulantes à adoção”, diz.

Segundo a presidente da Angaad, iniciativas bem-sucedidas surgiram, mas de forma muito pontual. Foram criados, por exemplo, cursos à distância em alguns estados, como Minas Gerais, Mato Grosso do Sul e Pernambuco, frutos de parceria de grupos de apoio com o Judiciário. “A gente teve de se reinventar, atuar de forma virtual com as famílias”, conta.

O juiz auxiliar da presidência do Conselho Nacional de Justiça e secretário especial de Programas, Pesquisas e Gestão Estratégica, Richard Pae Kim, diz que não há dúvida de que a pandemia criou inúmeras dificuldades para a avaliação dos casos de risco e para o andamento dos processos de acolhimento e de desacolhimento familiar e institucional.

Ele afirma, porém, que, “apesar do número de sentenças de adoções ter caído, o número de adoções iniciadas foi próximo aos números do ano passado”. E ressalta que o CNJ editou em suas resoluções a obrigatoriedade de se priorizar o julgamento dos pedidos de desacolhimento das instituições.

“As etapas do estudo social e da avaliação psicológica das famílias, necessárias para dar andamento a processos de adoção, ficaram prejudicadas de algum modo. E é muito cedo para concluirmos se a utilização de novas tecnologias de comunicação, como o uso da videoconferência e avaliações técnicas à distância, estão trazendo prejuízos para as famílias ou para os acolhidos. Isso tem de ser analisado caso a caso. Após a pandemia teremos de fazer um grande diagnóstico nacional”, afirma.

Há hoje no Brasil 46 mil pretendentes inscritos no Sistema Nacional de Adoção. Na outra ponta, estão 9 mil crianças e adolescentes. O problema é que existe um abismo entre os dois pólos. A idade é um dos impedimentos. Enquanto 73% só aceitam crianças até 5 anos, por exemplo, só 27% das crianças têm menos de 6 anos.

Nova família em plena pandemia

Thaisa, o marido, as três filhas e o novo integrante da família — Foto: Thaisa Fonseca/Arquivo pessoal

Thaisa, o marido, as três filhas e o novo integrante da família — Foto: Thaisa Fonseca/Arquivo pessoal

A dona de salão de beleza Thaisa Aládia Araujo Fonseca, de 30 anos, e o marido, o almoxarife Adriano Lacerda Rosa Araújo, de 39, decidiram ampliar a família em janeiro. Moradores de Uberlândia (MG), eles já tinham passado por um processo de adoção há dois anos, quando acolheram três irmãs, na época com 6, 10 e 14 anos. Neste ano, os dois resolveram recorrer aos grupos de Facebook voltados ao que se chama de “busca ativa” para encontrar o quarto filho: um desejado menino.

Encontraram um garoto de 12 anos, de Maravilha (SC). Ficaram sabendo que ele tinha necessidades especiais, mas não viram isso como um impeditivo e continuaram o processo. “Olhamos outras crianças, mas nos apaixonamos por ele. E pensamos: ‘se fosse um filho biológico, a gente não teria como escolher’. Então eu fui atrás de informações e me senti encorajada”, relata Thaisa.

Estava tudo programado para que o estágio de convivência, período de adaptação que antecede a adoção definitiva, ocorresse em abril. Mas daí surgiu a pandemia, períodos de isolamento social consecutivamente prorrogados, e o estágio foi remarcado para julho.

O garoto ficou ansioso. “A psicóloga do abrigo usou um calendário em que ele ia cortando os dias para compreender que a gente chegaria”, conta Thaisa. Segundo ela, as videochamadas também ajudaram a aliviar a ansiedade. “Aos sábados e domingos, quando a família se reunia, era quando a gente fazia as chamadas de vídeo. E ele perguntava quando a gente iria”, lembra.

Após uma segunda postergação, o estágio foi finalmente remarcado para agosto. “Fui eu, meu esposo, nossas três filhas. A gente percorreu 1.300 quilômetros de carro até a cidade dele.”

Thaisa conta que uma das voluntárias do Grupo de Estudos e Apoio à Adoção de Maravilha (Geama) emprestou um sítio próximo à cidade para que a família pudesse fazer a adaptação. “Foi preciso para ter mais espaço para esse convívio familiar, já que a pandemia restringiu a possibilidade de passear com ele. Também foi melhor para lidar com os problemas de saúde dele, que toma medicação pela manhã, à tarde e à noite”, diz.

A convivência, aliás, é a principal diferença apontada por Thaisa entre a chegada das três irmãs e a do garoto, que ocorreu em um contexto de “novo normal”.

“Na adoção das meninas, a gente pôde passear, descobrir o que elas gostavam, do que tinham medo. E na dele a gente não pôde sair, fazer um passeio diferente dentro da cidade. Eu só fui descobrir alguns medos dele na volta para Uberlândia, quando já estava com a guarda.”
 

Há apenas 15 dias no novo lar, o filho recém-chegado de Thaisa já se adapta à rotina da casa e faz suas tarefas da escola, ainda com o apoio das professoras que o assistiam em Maravilha. “As minhas três também estão estudando online. E a gente já tem uma rotina de manhã, que é quando estou em casa à disposição deles. Eu coloquei ele na mesa para fazer a atividade com as irmãs, e ele achou um barato.”

Curso virtual

Um dos estados que decidiram criar um curso virtual para pretendentes à adoção no meio da pandemia do novo coronavírus foi Mato Grosso do Sul. O analista judiciário e coordenador do grupo de apoio à adoção Afagas, Diógenes Duarte, diz que, em razão do curso remoto, o número de pretendentes até cresceu no estado. “Em três meses, quase 600 fizeram a preparação para a habilitação. A gente tem feito até com mais gente do que se fosse presencial, como era antes da pandemia.” Ele admite, no entanto, que se trata de uma exceção no Brasil.

Duarte diz que a restrição de voos e o isolamento social prejudicaram a aproximação entre pretendentes e crianças. Ele relata, porém, que isso foi possível de suprir de certa forma. “Houve um impacto e diminuiu o acesso às casas abrigo, por exemplo. Mas foram feitas muitas videochamadas, até pela questão da segurança. A gente já fazia o contato dessa forma antes da pandemia, mas aumentou. A tecnologia foi uma grande aliada.”

A professora Andréia de Oliveira, de 34 anos, é uma das que fizeram o curso no estado. Ela e o marido decidiram, após 15 anos de relacionamento, adotar uma criança.

“Até hoje, eu optei por investir na minha profissão. Fiz mestrado, doutorado. E a ideia era eu engravidar e adotar mais tarde. Porque a gente sempre quis ter um biológico e um adotivo. Mas não tinha decidido o quando”, diz.

“Aí em março, a gente estava em um restaurante e havia uma mobilização pela visibilidade das pessoas com Down e eu sempre estudei, trabalhei e me interessei muito pelas pessoas com esse distúrbio. E aí a gente viu uma criança com Down e eu comentei: ‘Nossa, quero muito adotar uma criança com Down quando tiver 40 anos’. Meu marido me olhou e falou: ‘Por que não agora?’ Os dois começaram a chorar na mesma hora”, conta.

Ela diz que ligou, então, pro fórum para saber sobre os cursos para pretendentes, mas foi informada de que eles não iam acontecer por causa da pandemia e que não havia nenhuma previsão de novas datas. Dias depois, porém, foi surpreendida com a notícia do curso online. Era um sinal.

Andréia diz que o fato de ele ser virtual, na verdade, foi positivo. “Ser presencial, às vezes, é limitador. Eu dou aula à noite. Então não ia ter conseguido fazer se não fosse virtual por causa dos horários. No curso tinha pais e mães caminhoneiros, por exemplo, que não estavam na cidade o tempo todo. Claro que não é algo totalmente inclusivo, porque ainda há muita gente que não sabe mexer ou ter acesso à internet. Mas foi louvável o esforço da equipe para dar continuidade a esse trabalho.”

Ela conta que o curso a fez amadurecer a ideia de ter um filho e até pensar em engravidar logo. “Uma coisa não anula a outra. Nossa decisão é ter dois filhos. Um gerado biologicamente e outro não.”

Agora, Andréia e o marido têm um ano para dar entrada na habilitação – o que planejam fazer em breve.

Edinéia e Alessandra: expectativa para se tornarem mães — Foto: Alessandra Moura/Arquivo pessoal

Edinéia e Alessandra: expectativa para se tornarem mães — Foto: Alessandra Moura/Arquivo pessoal

A professora Alessandra Moura, de 46 anos, e a companheira Edinéia, de 35 anos, também fizeram o curso online. Após 14 anos juntas, elas decidiram, enfim, realizar o sonho de serem mães.

“Sempre tive a vontade de adotar, desde adolescente. E eu comecei a pensar que queria irmãos e já maiores. Se dá conta de um, dá conta de dois. Tem um monte de criança para a gente dar e receber amor. E aí, quando a gente se conheceu, conversou bastante e ela também desenvolveu essa vontade.”

Alessandra também conta que o fato de o curso ter sido online foi ótimo porque foi possível conciliar o horário das duas. “A gente achou maravilhoso o curso, com profissionais de variadas áreas, apostilas muito bem feitas. Ele é fundamental para todos que pensam em ter filhos. É um aprendizado sem igual.”

Agora, ambas não veem a hora de ver a casa cheia. “A expectativa é muito grande de adotar agora na pandemia. Há uma preocupação porque a gente está trabalhando mais, mas, ao mesmo tempo, quer que as crianças cheguem logo, para poder ficar com a gente e tirar essa rotina exacerbada. A gente quer ter um tempo de qualidade com elas, para poder dar atenção, trocar afeto.”

Rotina nos abrigos

Abrigos adotaram protocolos de higiene e segurança — Foto: Caio Kenji/G1

Abrigos adotaram protocolos de higiene e segurança — Foto: Caio Kenji/G1

A fundadora do abrigo Associação e Comunidade Casa de Nazaré, Maria Aparecida da Silva, de 65 anos, conta que desde o final de março a instituição teve de ser fechada para visitas, tanto de familiares dos acolhidos quanto de doadores, de voluntários e outros apoiadores. São 32 crianças distribuídas em oito casas na zona rural de Jundiaí, no interior de São Paulo.

“No primeiro mês, era tudo novo. Então, colocamos a maioria dos nossos funcionários em férias, ficando apenas aqueles que lidavam com as crianças. Além disso, instalamos dispositivos de sabonete líquido, álcool gel e papel toalha em todas as casas para que nem as crianças nem os funcionários usassem toalha de rosto.”

Já no segundo mês, quando se percebeu que a quarentena ia durar muito tempo, a rotina teve de ser adaptada. “Quem conhece a rotina de abrigo sabe que o distanciamento não existe muito. A criança precisa de abraço, beijo, ainda mais nesse momento de afastamento de todas as outras pessoas”, conta.

Por isso, as equipes técnica e administrativa passaram a trabalhar remotamente fornecendo todo o apoio e, para colher as doações que recebiam, foi mantido um único funcionário, que passou a higienizar tudo o que era entregue. Segundo Maria Aparecida, nenhuma criança foi infectada até o momento. “O que mostra que nosso protocolo, portanto, funcionou”, comemora.

Pandemia fez adoções caírem e abrigos mudarem a rotina — Foto: Caio Kenji/G1

Pandemia fez adoções caírem e abrigos mudarem a rotina — Foto: Caio Kenji/G1

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